sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cristovão Tezza: o filho eterno e novas ficções - 13 de dezembro de 2010

Cristovão Tezza:
Escritor e professor. Autor, entre outros, de O filho eterno (Record, 2007) que recebeu o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano; Prêmio Jabuti 2008 de melhor romance; Prêmio Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa (1º lugar), entre outros prêmios.

            “– Acho que é hoje – ela disse. – Agora – completou, com a voz mais forte, tocando-lhe o braço, porque ele é um homem distraído.
            Sim, distraído, quem sabe? Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver. A rigor, exceto por um leque de ansiedades felizes, ele não tem nada, e não é ainda exatamente nada. E essa magreza semovente de uma alegria agressiva, às vezes ofensiva, viu-se diante da mulher grávida quase como se só agora entendesse a extensão do fato: um filho. Um dia ele chega, ele riu, expansivo. Vamos lá!
            A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava já havia quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguardavam o elevador, à meia-noite. Ela está pálida. As contrações. A bolsa, ela disse – algo assim. Ele não pensava em nada – em matéria de novidade, amanhã ele seria tão novo quanto o filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou-se de uma garrafinha caubói de uísque, que colocou no outro bolso; no primeiro estavam os cigarros. Um cartum: a figura fuma um cigarro atrás do outro na sala da espera até que a enfermeira, o médico, alguém lhe mostra um pacote e lhe diz alguma coisa muito engraçada, e nós rimos. Sim, há algo de engraçado nesta espera. É um papel que representamos, o pai angustiado, a mãe feliz, a criança chorando, o médico sorridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos dá parabéns, a vertigem de um tempo que, agora, se acelera em desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em torno de um bebê, para só estacionar alguns anos depois – às vezes nunca. Há um cenário inteiro montado para o papel, e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, também. Ele merecerá respeito. Há um dicionário inteiro de frases adequadas para o nascimento. De certa-forma – agora ele dava partida no fusca amarelo (eles não dizem nada, mas sentem uma coisa boa no ar) e cuidou para não raspar o pára-lama na coluna, como já aconteceu duas vezes – ele também estaria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos edificante. Embora continuasse não estando onde estava – essa a sensação permanente, por isso fumava tanto, a máquina inesgotável pedindo gás. É um terreno inteiro de idéias: pisando nele, não temos coisa alguma, só a expectativa de um futuro vago e mal desenhado. Mas eu também não tenho nada ainda, ele diria, numa espécie metafísica de competição. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bem, um filho – e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando em alguma coisa enfim sólida, uma fotografia publicitária da família congelada na parede. Não: ele está em outra esfera da vida. Ele é um predestinado à literatura – alguém necessariamente superior, um ser para o qual as regras do jogo são outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade é discreta, tolerante e sorridente. Ele vive à margem: isso é tudo. Não é ressentimento, porque ele não está ainda maduro para o ressentimento, essa força que, em algum momento, pode nos pôr agressivamente em nosso lugar. Talvez o início dessa contraforça (mas ele seria incapaz de saber, tão próximo assim do instante presente) seja o fato de que jamais conseguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro. Uma tensão que quase sempre escapa pelo riso, a libertação que ele tem.
            No balcão da maternidade a moça, gentil, pede um cheque de garantia, e as coisas se passam rápidas demais, porque alguém está levando sua mulher para longe, sim, sim, a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os trâmites – e mais uma vez tem dificuldade de preencher o espaço da profissão, quase ele diz “quem tem profissão é a minha mulher. Eu” – e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a mulher também, mas a afetividade se transforma, sob olhos alheios, em solenidade – alguma coisa maior, parece, está acontecendo, uma espécie de teatro se desenha no ar, somos delicados demais para o nascimento e é preciso disfarçar todos os perigos desta vida, como se alguém (a imagem é absurda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sente diante dos hospitais, dos prédios públicos, das instituições solenes, de colunas, halls, guichês, abóbadas, filas, da sua granítica estupidez – a gramática da burocracia repete-se também ali, que é um espaço pequeno e privado. Mais tarde, ele se vê em alguma sala diante da mulher na maca, que, pálida, sorri para ele, eles tocam as mãos, tímidos, quase como quem comete uma transgressão. O lençol é azul. Há uma assepsia em tudo, uma ausência bruta de objetos, os passos fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angústia da falsidade, há um erro primeiro em algum lugar, e ele não consegue localizá-lo, mas em seguida não pensa mais nisso. Os segundos escorrem.
            Dizem alguma coisa que ele não ouve; e na espera, perde a noção do tempo – que horas são? Noite avançada. Agora está sozinho num corredor ao lado de uma rampa vazia e em frente a duas portas basculantes, com um vidro circular no centro de cada lâmina por onde às vezes ele espia mas nada vê. Ele não pensa em coisa alguma, mas, se pensasse, talvez dissesse: estou como sempre estive – sozinho. Acendeu um cigarro, feliz: e isso é bom. Deu um gole do uísque que tirou do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coisas vão bem – ele não pensava no filho, pensava nele mesmo, e isso incluía a totalidade de sua vida, mulher, filho literatura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada realmente bom. Pilhas de maus poemas, dos 13 anos até o mês passado: O filho da primavera. A poesia arrasta-o sem piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas é preciso dizer alguma coisa sobre o que está acontecendo, e ele não sabe exatamente o que está acontecendo. Tem a vaga sensação de que as coisas vão dar certo, porque são frutos do desejo; e quem está à margem, arrisca – ou estaria encaixado na subvida do sistema, essa merda toda, ele quase declama, e dá outro gole de uísque e acende outro cigarro. Aos 28 anos não acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe muito, dá risadas prolongadas e inconvenientes, lê caoticamente e escreve textos que atafulham a gaveta. Um gancho atávico ainda o prende à nostalgia de uma comunidade de teatro, que freqüenta uma vez por ano, numa prolongada dependência ao guru da infância, uma ginástica interminável e insolúvel para ajustar o relógio de hoje à fantasmagoria de um tempo acabado. Filhote retardatário dos anos 70, impregnado da soberba da periferia da periferia, vai farejando pela intuição alguma saída. É difícil renascer, ele dirá, alguns anos depois, mais frio. Enquanto isso, dá aulas particulares de redação e revisa compenetrado teses e dissertações de mestrado sobre qualquer tema. A gramática é uma abstração que aceita tudo. Desistiu de ser relojoeiro, ou foi desistido pela profissão, um dinossauro medieval. Se ainda tivesse a dádiva do comércio, atrás de um balcão. Mas não: escolheu consertar relógios, o fascínio infantil dos mecanismos e a delicadeza inútil do trabalho manual.
            E no entanto sente-se um otimista – ele sorri, vendo-se do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real. Sozinho no corredor, dá outro gole de uísque e começa a ser tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam. Um cromo publicitário, e ele ri do paradoxo: quase como se o simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolação ao sistema, mas isso não é necessariamente mau, desde que estejamos “inteiros”, sejamos “autênticos”, “verdadeiros” – ainda gostava dessas palavras altissonantes para o uso próprio, a mitologia dos poderes da pureza natural contra os dragões do artifício. Ele já começa a desconfiar dessas totalidades retóricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas – de fato, nunca se livrou completamente desse imaginário, que, no fundo da alma, significava manter o pé atrás, atento, em todos os momentos da vida, para não ser devorado pelo violento e inesgotável poder do lugar-comum e da impessoalidade. Era preciso que a “verdade” saísse da retórica e se transformasse em inquietação permanente, uma breve utopia, um brilho nos olhos.
            Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entrando no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daquele momento, uma solenidade para uso próprio, íntimo, intransferível. Como o diretor de uma peça de teatro indicando ao ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se até ali; sorria. Veja como você tira o cigarro da carteira, sentado sozinho neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho. Cruze as pernas. Pense: você não quis acompanhar o parto. Agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos – uma participação quase religiosa. Tudo parece que está virando religião. Mas você não quis, ele se vê dizendo. É que o meu mundo é mental, talvez ele dissesse, se fosse mais velho. Um filho é a idéia de um filho; uma mulher é a idéia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a idéia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de idéias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa.    
            Ali, era enfim a sensação de um tempo
parado, suspenso. Naquele silêncio iluminado, em que pequenos ruídos distantes – passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa – ganhava a solenidade de um breve eco, ele imagina a mudança de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para que as coisas não mudem muito. Tem energia de sobra para ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos intervalos, fumando bastante, dando risadas e contando histórias, enquanto a mulher se recupera. Seria agora um pai, o que sempre dignifica a biografia. Será um pai excelente, ele tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de mundo. Já tem pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de alguns dos versos de O filho da primavera – a professora amiga vai publicá-lo na Revista de Letras. Sim, os versos são bonitos, ele sonhou. O poeta é bom conselheiro. Faça isso, seja assim, respire esse ar, olhe o mundo – as metáforas, uma a uma, evocam a bondade humana. Kipling da província, ele se sente impregnado de humanismo. O filho será a prova definitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz alta, no silencio daquele corredor final, poucos minutos antes de sua nova vida. Era como se o espírito comunitário religioso que florescia secretamente na alma do país, todo o sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracionalismo, sua transcendência etérea, a paz celestial dos cordeiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou livros-texto – vale tudo, ó Senhor! –, encontrasse também no poeta marginal, talvez principalmente nele, o seu refúgio. O empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos, sandálias franciscanas, as portas da percepção, vida natural, sexo livre, somos todos autênticos. Sim, era preciso um contrapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como várias vezes nos matou. Há um descompasso nesse projeto supostamente pessoal, mas isso ele ainda não sabe, ao acaso de uma vida renitentemente provisória; a minha vida não começou ainda, ele gostava de dizer, como quem se defende da própria incompetência – tantos anos dedicados a... a o que mesmo? Às letras, à poesia, à vida alternativa, à criação, a alguma coisa maior que ele não sabe o que é – tantos anos e nenhum resultado! Ficar sozinho é uma boa defesa. Vivendo numa cidade com gênios agressivos em cada esquina, ele contempla a magreza de seus contos, finalmente publicados, onde encontra defeitos cada vez que abre uma página. O romance juvenil lançado nacionalmente vai se encerrar na primeira edição, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o editor de São Paulo, daqui a alguns meses. “É preciso cortar esse parágrafo na segunda edição porque as professorinhas do interior estão reclamando.” Desistiu do livro.
            Ele não sabe ainda, mas já sente que aquilo não é a sua literatura. Três meses antes terminou O terrorista lírico, e parece que alguma coisa melhor começa ali, ainda informe. Alguém se debatendo para se livrar da influência do guru, tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da percepção, sob a frieza da razão. Ele não é mais um poeta. Perdeu para sempre o sentimento do sublime, que, embora soe envelhecido, é o combustível necessário para escrever poesia. A idéia do sublime não basta, ele começa a vislumbrar – com ela, chegamos só ao simulacro. É preciso ter forças e peito para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no ridículo. Há algo incompatível entre mim e a poesia, ele se diz, defensivo – assumir a poesia, parece, é assumir uma religião, e ele, desde sempre, é alguém completamente desprovido de sentimento religioso. Um ser que se move no deserto, ele talvez escrevesse, com alguma pompa, para definir a própria solidão. A solidão como um projeto, não como uma tristeza. Eu ainda não consegui ficar sozinho, conclui, com um fio de angústia – e agora (ele olha para a porta basculante, sem pensar) nunca mais. Começou há pouco a escrever outro romance, Ensaio da Paixão, em que – ele imagina – passará a limpo sua vida. E a dos outros, com a língua da sátira. Ninguém se salvará. Três capítulos prontos. É um livro alegre, ele supõe. Eu preciso começar, de uma vez por todas, ele diz a ele mesmo, e só escrevendo saberá quem é. Assim espera. São coisas demais para organizar, mas talvez justo por isso ele se sinta bem, feliz, povoado de planos.
            Súbito, o médico – por quem nunca sentiu simpatia, e portanto nada espera dele – abre as portas basculantes, como sempre sem sorrir. Nenhuma novidade na ausência de sorriso, daí porque, pai moleque, mal ocultando a garrafinha de uísque, não se perturbou. O homem tirava as luvas verdes das mãos, como quem encerra uma tarefa desagradável – por alguma razão foi essa a imagem absurda, certamente falsa, que lhe ficou daquele momento.
            – Tudo bem? – ele pergunta, por perguntar: a cabeça já está no mês seguinte, sete meses depois, um ano e três meses, cinco anos à frente, o filho crescendo, a cara dele.
            – É um menino. – Também nenhuma surpresa: eu tinha certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito, se falasse. – A mãe está muito bem.
            E desapareceu por onde veio. (...)”

Fragmento de O filho eterno, de Cristovão Tezza, Record 2007.

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