terça-feira, 22 de novembro de 2011

Cláudio Willer - 21 de novembro de 2011






Rimbaud por Claudio Willer - Surrealismo e Poesia no Barco Bêbado de Rimbaud - 21 de novembro de 2011


Arthur Rimbaud
Correspondências (fragmento)

Tradução de Ivo Barroso


Carta a Paul Demeny

Charleville, 15 de maio de 1871.

Resolvi proporcionar-lhe uma hora de literatura nova. Começo logo com um salmo de atualidade:

CANTO DE GUERRA PAISIENSE


– Eis um pouco de prosa sobre o futuro da poesia –
Toda a poesia antiga vai dar na poesia grega, Vida harmoniosa. – Da Grécia ao movimento romântico – Idade Média – só temos literatos, versificadores. De Ênio a Teroldo, de Teroldo  a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, aviltamento e glória de inúmeras gerações idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. Se tivessem apagado suas rimas, embaralhado seus hemistíquios, o Divino Tolo seria hoje tão ignorado quanto o último entre os autores de Origens. Depois de Racine, o jogo cria mofo. Havia durado dois mil anos.
Nem pilhéria, nem paradoxo. A razão me inspira mais certezas sobre o assunto do que jamais poderia ter de cóleras um Jeune-France. Quanto ao mais, liberdade aos novos! de execrar os ancestrais: estamos em casa e temos tempo.
O romantismo nunca foi bem julgado. Quem o julgaria? Os críticos!! Os românticos, que provam muito bem como a canção é raramente obra, ou seja, o pensamento cantado e compreendido do cantor?
Porque Eu é um outro. Se o cobre acorda clarim, nenhuma culpa lhe cabe. Para mim é evidente: assisto à eclosão de meu pensamento: eu a contemplo, eu a escuto. Tiro uma nota ao violino: a sinfonia agita-se nas profundezas, ou ganha de um salto a cena.
Se os velhos imbecis tivessem descoberto algo mais que a falsa significação do Eu, não teríamos de varrer esses milhões de esqueletos que, desde um tempo infinito, vêm acumulando os produtos de sua inteligência caolha, arvorados em autores!
Na Grécia, já disse, versos e liras dão ritmo à Ação. Depois disso, música e rimas se tornaram jogos, divertimentos. O estudo desse passado encanta os curiosos; vários se distraem em renovar tais antiguidades: é coisa para eles. A inteligência universal sempre rejeitou essas ideias, é claro; os homens recolheram uma parte desses frutos do cérebro; agiam segundo eles, escreviam livros com eles; assim andaram as coisas, o homem não se aperfeiçoando, não estando ainda desperto, ou ainda não na plenitude do grande sonho. Funcionários, escritores: autor, criador, poeta, tal homem jamais existiu!
O primeiro estudo de quem aspira a ser poeta é o conhecimento total de si mesmo; buscar sua alma, inspecioná-la, experimentá-la, conhecê-la. Assim que a sabe, deve cultivá-la; isso parece simples: em todo cérebro realiza-se um desenvolvimento natural; quantos egoístas se proclamam autores; há muitos outros que se atribuem seu progresso intelectual! – Mas trata-se de tornar a alma monstruosa: à maneira dos comprachicos, em suma! Imagine um homem que plante e cultive verrugas em seu rosto.
Afirmo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente.
O Poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar-se a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência. Inefável tortura para a qual se necessita toda a fé, toda a força sobre-humana, e pela qual o poeta se torna o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, – e o Sabedor supremo! – pois alcança o insabido. Por ter, como ninguém, cultivado sua alma, que já era rica, ele alcança o desconhecido, e quando, assombrado, terminar por perder a consciência de suas visões, ele as terá visto! Que se arrebente no salto rumo às coisas inauditas e inomináveis: outros trabalhadores horríveis virão; e começarão pelos horizontes onde o outro sucumbiu!

– Continuação em seis minutos – 

Intercalo aqui um outro salmo fora do texto: conceda-lhe uma atenção complacente, – e todo mundo ficará encantado. – Tenho o arco em mão, começo:


MINHAS POBRES NAMORADAS


Eis aí. E veja bem que, se não receasse fazê-lo desembolsar mais de 60 cent. De porte, – eu pobre coitado que, em sete meses, não vi sequer uma moeda de bronze! – mandar-lhe-ia ainda meus “Amantes de Paris”, cem hexâmetros, sim senhor, e minha “Morte de Paris”, duzentos hexâmetros! –
Recomeço:
Logo, o poeta é um verdadeiro roubador do fogo.
Responde pela humanidade e até pelos animais; deverá fazer com que suas invenções sejam cheiradas, ouvidas, palpadas; se o que transmite do fundo possui forma, dá-lhe forma; se é informe, deixa-o informe. Encontrar uma língua;
– Afinal, como toda palavra é ideia, a linguagem universal há de chegar um dia. É preciso ser acadêmico – mais morto que um fóssil – para elaborar um dicionário, em que língua seja. Os fracos que se pusessem a pensar sobre a primeira letra do alfabeto poderiam rapidamente mergulhar na loucura! –
Essa língua será da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, seres, sons: pensamento que se engancha a um pensamento e o puxa para fora. O poeta seria o indicador da qualidade de desconhecido despertada em seu tempo na alma universal; daria mais: a fórmula de seu pensamento, a notação de seu avanço no Progresso! Enormidade se fazendo norma, absorvida por todos, ele seria verdadeiramente um multiplicador de progresso!
Esse futuro será materialista, como vê; – Sempre repleta, de Número e de Harmonia, essa poesia será feita para ficar. – No fundo, seria ainda um pouco a Poesia grega.
A arte eterna terá suas funções, já que os poetas serão cidadãos. A Poesia não marcará mais o ritmo da ação; ela estará na frente.
Esses poetas virão! Quando for quebrada a servidão infinita da mulher, quando ela viver para si e por si mesma, quando o homem – até então abominável – lhe tiver dado sua alforria, também ela será poeta! A mulher encontrará o ignoto! Seu mundo de ideias diferirá do nosso? – Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, repelentes, deliciosas; nós as tomaremos, as compreenderemos.
À espera disso, insistamos com os poetas pelo novo – ideias e formas. Todos os hábeis estariam convictos de haver satisfeito a essa demanda. – Mas não é isto!
Os primeiros românticos foram videntes sem se darem muita conta disto: o cultivo de suas almas começou por acidente: locomotivas abandonadas, mas resfolegantes, que às vezes  entram nos trilhos. – Lamartine mostra-se às vezes vidente, mas estrangulado pela forma envelhecida. – Hugo, cabeçudo demais, tem muito de VISTO em seus últimos volumes: Os Miseráveis são um verdadeiro poema. Tenho Les Châtiments [Os Castigos] à mão; Stella dá-nos mais ou menos a medida da visão de Hugo. Demasiado de Belmontet e de Lamennais, de Jeovás e de colunas, velhas enormidades cediças.
Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações sofredoras e obcecadas pelas visões, – insultadas por sua angelical preguiça! Ó! Os contos e os provérbios insípidos! ó as noites! ó Rolla, ó Namouna, ó a Taça! Tudo é francês, ou seja, odiento ao grau supremo; francês, não parisiense! Mais uma obra desse gênio odioso que inspirou Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentado pelo Sr. Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Fascinante, o seu amor! Eis aí a pintura a esmalte, da poesia sólida! Por muito tempo a poesia francesa será saboreada, mas na França. Qualquer jovem empregado de mercearia é capaz de desembuchar um apóstrofe à la Rolla; todo seminarista traz suas quinhentas rimas no segredo de um caderno. Aos quinze anos, esses arroubos de paixão põem os jovens no cio; aos dezesseis, já se contentam em recitá-los com sentimento; aos dezoito, ou mesmo aos dezessete, todo colegial que tem a possibilidade faz seu Rolla, escreve um Rolla! Alguns talvez ainda morram por isso. Musset não soube fazer nada: havia visões por trás da gaze das cortinas: ele fechou os olhos. Francês, molenga, arrastado do boteco para a cátedra colegial, o belo morto está morto, e, agora, não nos demos sequer ao trabalho de despertá-lo com as nossas abominações!
Os segundos românticos são muito videntes: Th[éophile] Gautier, Lec[onte] de Lisle, Th[éodore] de Banville. Mas como inspecionar o invisível e escutar o inaudito era algo diferente de retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Contudo, viveu num meio por demais artístico; e sua forma, tão elogiada, é de fato mesquinha: as invenções do ignoto requerem formas novas.
Afeita às velhas formas, entre os inocentes, A. Renaud, – fez seu Rolla; L. Grandet, – fez seu Rolla; os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, Cl. Popelin, Soulary, L. Salles; os discípulos, Marc Aicard, Theuriet; os mortos e os ibecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamps, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boêmios; as mulheres; os talentos, Leon Dierx e Sully-Prudhomme, Coppée, – a escola nova, dita parnasiana, tem dois videntes, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. – É tudo. Por isso trabalho para me tornar vidente. – E terminemos com um canto piedoso.


AGACHAMENTOS


Seria execrável de sua parte se não me respondesse: logo, porque daqui a oito dias estarei em Paris, talvez.
Até a vista,

A. Rimbaud.

Senhor Paul Demeny,
Douai.






Arthur Rimbaud
Prosa poética (fragmento)

Tradução de Ivo Barroso



A MANHÃ

            Já não foi uma vez adorável, heróica, fabulosa a minha mocidade, dessas de se inscrever em páginas de ouro,  promissora demais! Qual o crime, que erro, me fez merecer a miséria de agora? Vós que admitis possam as bestas soluçar de dor, os doentes se desesperarem, terem os mortos sonhos maus, tentai descrever minha queda e meu sono. Eu por mim, já não me explico melhor do que um mendigo com seus constantes padre-nossos e ave-marias. Não sei mais falar!
            Hoje creio haver, no entanto, terminado a relação de meu inferno. E era bem o inferno; o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.
            Neste mesmo deserto, nesta mesma noite, meus olhos cansados despertam sempre à luz da estrela cor de prata, sempre, sem que se comovam os reis da vida, os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos afinal, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da nova sabedoria, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, para adorar   os primeiros! o Natal na terra!
            O cântico dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida.


MANHÃ DE EMBRIAGUEZ

            Oh meu Bem, oh meu Belo! Fanfarra atroz em que não mais tropeço! cavalete feérico! Hurra pela a obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Tudo começou com risos de crianças, com eles vai terminar. Este veneno permanecerá em nossas veias mesmo quando acabar a fanfarra e voltarmos a nossa antiga inarmonia. Ó, agora que somos tão dignos dessas torturas! recolhamos fervorosamente esta promessa sobreumana feita ao nosso corpo e à nossa alma criados: esta promessa, esta demência! A aparência, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, desterrar as honestidades tirânicas, para que pudéssemos realizar o nosso amor mais puro. Começou com certas repugnâncias e terminou, ­— não nos sendo possível apreender de imediato essa eternidade, — terminou com uma debandada de perfumes.
            Risos de crianças, discrição dos escravos, austeridade das virgens, horror das faces e objetos daqui, sagrado sede vós pela lembrança desta vigília. O que havia começado com toda a grosseria, eis que vai acabar em anjos de chama e gelo.
            Curta vigília de embriaguez, sagrada! ainda que não seja pela máscara com que nos gratificaste. Nós te confirmamos, método! Não nos esquecemos que ontem glorificaste cada uma de nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar nossa vida inteira todos os dias.
            Eis o tempo dos Assassinos.



ARTHUR RIMBAUD – (1854-1891). Poeta francês. Considerado pós-romântico e precursor do surrealismo, é uma das maiores influências da poesia moderna. Jean Nicolas Arthur Rimbaud nasce em Charleville e revela vocação para os versos ainda no colégio. Foge de casa diversas vezes durante a adolescência.
Muda-se para Paris aos 17 anos, financiado pelo poeta Paul Verlaine, a quem enviara seu Soneto das Vogais (1871). Um ano depois Verlaine deixa a família para viver com Rimbaud em Londres. A tempestuosa relação amorosa entre os dois termina quando Rimbaud é ferido por Verlaine com um tiro no pulso.
Uma Estação no Inferno (1873) e Iluminações (1886) revelam uma consciência estética nova, uma linguagem libertária, a idéia de que a poesia nasce de uma alquimia do verbo e dos sentidos. Quando termina Iluminações, aos 20 anos, desiste da literatura e retoma a vida errante que o caracterizara na adolescência.
Comercializa peles e café na Etiópia, alista-se no Exército colonial holandês, para desertar logo depois, trafica armas em Ogaden, vai para o Chipre e para Alexandria. Em 1891 tem a perna amputada, em decorrência de um câncer no joelho. Morre em Marselha, depois de demorada agonia.

CLAUDIO WILLER – Doutor em Letras na USP.. Poeta, ensaísta e tradutor; publicou livros como Geração Beat (L&PM Pocket, 2009), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna (Civilização Brasileira, 2010) e vários ensaios na coletânea O Surrealismo (Perspectiva, 2008).