terça-feira, 10 de maio de 2011

Paulo Bezerra - 09 de maio 2011







Paulo Bezerra - Clássicos Universais: uma leitura de Crime e Castigo, de Dostoiévski


Crime e Castigo (fragmento)

Fiódor Dostoiévski

Tradução: Paulo Bezerra

“(...) – Pelo que me lembro, tratei do estado psicológico do criminoso durante todo o ato do crime.
– Sim, e o senhor insiste em que o ato de execução de um crime sempre é acompanhado de uma doença. Muito, muito original, no entanto...a mim propriamente não foi essa parte do seu artigo que me interessou e sim um certo pensamento emitido no final do artigo mas que o senhor, infelizmente, desenvolve apenas por insinuação, de forma vaga... Numa palavra, se o senhor está lembrado, há certa insinuação ao fato de que existiriam no mundo certas pessoas que podem... ou seja, não é que podem mas têm o pleno direito de cometer toda sorte de desmandos e crimes, como se a lei não houvesse sido escrita para eles.
Raskólnikov sorriu ante a deturpação redobrada e proposital da sua idéia.
            – Como? O que é isso? Direito ao crime? Mas isso não é porque “o homem é vítima do meio”, é? – quis saber Razumíkhin até com certo espanto.
            – Não, não, não é bem assim – respondeu Porfiri. – Toda a questão consiste em que, no artigo dele, todos os indivíduos se dividiriam em “ordinários” e “extraordinários”. Os ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de infringir a lei porque eles, vejam só, são ordinários. Já os extraordinários têm o direito de cometer toda sorte de crimes e infringir a lei de todas as maneiras precisamente porque são extraordinários. É assim, parece, que está em seu artigo, se não me engano, não é?
            – Ora, como é que pode? Não é possível que esteja assim! – balbuciou perplexo Razumíkhin.
            Raskólnikov tornou a sorrir. Compreendeu num instante em que consistia a questão e para onde queriam empurrá-lo; estava lembrando do seu artigo. Decidiu aceitar o desafio.
             – Não é exatamente assim que está em meu artigo – começou ele com simplicidade e modéstia. – Pensando bem, reconheço que o senhor o expôs quase fielmente; até mesmo, se quiser, com absoluta fidelidade... (Era-lhe realmente agradável concordar que fora com absoluta fidelidade.) A única diferença é que eu, de modo algum, insisto em que as pessoas extraordinárias devam e sejam forçosamente obrigadas a cometer sempre toda sorte de desmandos, como o senhor diz. Acho até que um artigo desse tipo nem deixariam publicar. Eu insinuei pura e simplesmente que “o homem extraordinário tem o direito...ou seja, não o direito oficial, mas ele mesmo tem o direito de permitir à sua consciência passar... por cima de diferentes obstáculos, e unicamente no caso em que a execução da sua idéia (às vezes salvadora, talvez, para toda humanidade) o exija. O senhor afirmou que meu artigo é vago; estou disposto a elucidá-lo para o senhor, na medida do possível. Eu talvez não esteja enganado ao supor que o senhor, parece, está querendo isso mesmo; permita-me. Acho que se as descobertas que Kepler e Newton fizeram, como resultado de certas combinações, não pudessem chegar de maneira nenhuma ao conhecimento dos homens senão com o sacrifício da vida de um, dez, cem e mais homens, que impediriam tais descobertas ou lhes seriam um obstáculo, Newton teria o direito, e estaria inclusive obrigado, a... eliminar esses dez ou cem homens para levar suas descobertas ao conhecimento de toda a humanidade. Daí, aliás, não se conclui que Newton tivesse o direito de matar qualquer pessoa que lhe desse na telha, estivesse essa pessoa em sua frente ou cruzando com ele, ou de roubar  todos os dias na feira. Lembro-me, ainda, de que eu desenvolvo em meu artigo a idéia de que todos... bem, por exemplo, embora os legisladores tenham instituído a sociedade humana, começando pelos mais antigos e continuando com os Licurgos, Sólons, Maomés, Napoleões etc., todos eles, sem exceção, foram criminosos já pelo simples fato de que, tendo produzido a nova lei, com isso violaram a lei antiga que a sociedade venerava como sagrada e vinha dos ancestrais, e aí, evidentemente, já não se detiveram nem diante do derramamento de sangue, caso esse sangue  (às vezes completamente inocente e derramado de forma heróica em defesa da lei antiga) pudesse ajudá-los. É até notável que a maioria desses beneméritos e fundadores da sociedade humana foram sanguinários especialmente terríveis. Em suma, eu concluo que todos os indivíduos, não só os grandes, mas até aqueles que saem um mínimo dos trilhos, isto é, que têm a capacidade, ainda que mínima, de dizer alguma coisa nova, devem ser, por sua natureza, forçosamente criminosos – mais ou menos, é claro. Caso contrário seria difícil para eles sair dos trilhos, e em permanecer nos trilhos eles naturalmente não poderiam concordar, mais uma vez por sua natureza, e acho até que nem os macacos concordariam com isso. Numa palavra, o senhor percebe que nesse ponto não há nada de propriamente novo até hoje. Isso já foi publicado e lido milhares de vezes. Quanto à minha divisão dos indivíduos em ordinários e extraordinários, concordo que ela é um tanto arbitrária, mas acontece que eu não chego a insistir em números exatos. É só na minha idéia central que eu acredito. Ela consiste precisamente em que os indivíduos, por lei da natureza, dividem-se geralmente em duas categorias: uma inferior (a dos ordinários), isto é, por assim dizer, o material que serve unicamente para criar os seus semelhantes; e propriamente os indivíduos, ou seja, os dotados de dom ou talento para dizer em seu meio a palavra nova. Aqui as subdivisões, naturalmente, são infinitas, mas os traços que distinguem ambas as categorias são bastante nítidos: em linhas gerais, formam a primeira categoria, ou seja, o material, as pessoas conservadoras por natureza, corretas, que vivem na obediência e gostam de ser obedientes. A meu ver, elas são obrigadas a ser obedientes porque esse é o seu destino, e nisso não há decididamente nada de humilhante para elas. Formam a segunda categoria todos os que infringem a lei, os destruidores ou inclinados a isso, a julgar por suas capacidades. Os crimes desses indivíduos, naturalmente, são relativos e muito diversos; em sua maioria eles exigem, em declarações bastante variadas, a destruição do presente em nome de algo melhor. Mas se um deles, para realizar sua idéia, precisar passar por cima ainda que seja de um cadáver, de sangue, a meu ver ele pode se permitir, no seu interior, na sua consciência passar por cima do sangue – todavia, conforme a idéia e suas dimensões – observe isso. É só neste sentido que eu falo do direito deles ao crime no meu artigo. (Lembre-se o senhor de que nossa discussão começou pela questão jurídica.) Aliás não há motivo para muita inquietação: a massa quase nunca lhes reconhece esse direito, ela os justiça e enforca (mais ou menos) e assim, de forma absolutamente justa, cumpre o seu destino conservador para, não obstante, nas gerações seguintes, essa mesma massa colocar os mesmos executados no pedestal e reverenciá-los (mais ou menos). A primeira categoria é sempre de senhores do presente, a segunda, de senhores do futuro. Os primeiros conservam o mundo e o multiplicam em número; os segundos fazem o mundo mover-se e o conduzem para um objetivo. Tanto uns quanto os outros têm  o mesmo direito de existir. Numa palavra, no meu artigo todos têm direito idêntico e – vive la guerre éternelle – até a Nova Jerusalém, é claro!
– Então, apesar de tudo o senhor acredita mesmo na Nova Jerusalém?
– Acredito – respondeu Raskólnikov com firmeza; ao dizer isso e continuando toda a sua longa tirada, ele olhava para o chão, onde havia escolhido um ponto no tapete.
– E... e...e... em Deus, acredita? Desculpe tanta curiosidade.
– Acredito – repetiu Raskólnikov, levantando a vista para Porfiri.
– E... e na ressurreição de Lázaro, acredita?
– Ac-acredito. Por que lhe interessa tudo isso?
– Acredita literalmente?
– Literalmente.
– Então é assim...eu estava curioso. Desculpe. No entanto me permita – retomo o assunto anterior: acontece que eles nem sempre são justiçados; uns ao contrário...
– Triunfam em vida? Oh, sim, uns até atingem o objetivo em vida, e então...
– Eles mesmos começam a justiçar?
– Se preciso for, e, fique sabendo, até na maioria dos casos sua observação é bem sutil.
– Obrigado. Mas me diga uma coisa: como distinguir esses extraordinários dos ordinários? Teriam alguns sinais particulares? Falo no sentido de que, neste caso, caberia mais precisão, por assim dizer, mais precisão externa: desculpe-me essa preocupação natural de um homem prático e bem-intencionado, mas aí não seria necessário arranjar, por exemplo, algum uniforme, usar alguma coisa, certas marcas?... Porque, o senhor há de convir, se houver uma confusão e um indivíduo de uma categoria imaginar que pertence à outra categoria, e começar a “eliminar todos os obstáculos”, como o senhor se expressou de modo bastante feliz, então aí...
– Oh, isso acontece com bastante freqüência! Essa sua observação é ainda mais sutil que a anterior.
– Obrigado.
– Não há de quê; mas leve em consideração que o erro é possível mas só por parte da primeira categoria, ou seja, das pessoas ordinárias (como eu as denominei talvez de modo muito falho). Apesar da sua vocação congênita para obedecer, por certa brejeirice da natureza, que não se pode negar nem a uma vaca, muitas delas gostam de imaginar-se pessoas avançadas, “destruidoras”, de meter-se a portadoras da “palavra nova”, e o fazem com absoluta sinceridade. Ao mesmo tempo e com bastante freqüência não notam e até desprezam as pessoas efetivamente novas por acharem que são atrasadas e pensam de modo humilhante. Acho, no entanto, que aí não pode haver perigo considerável e o senhor, palavra, não tem razão para se preocupar, porque elas nunca vão longe. Por envolvimento, é claro, às vezes pode-se açoitá-las, para que compreendam o seu lugar, porém não mais; aí nem se precisa de quem execute: elas mesmas se chicoteiam, porque são muito bem-comportadas; umas trocam esses serviços entre si, e outras se chicoteiam com as próprias mãos... Impõem-se a si mesmas diversas confissões públicas – isso é bonito e edificante, numa palavra, o senhor não tem por que se preocupar... Essa lei existe.
– Bem, pelo menos desse aspecto o senhor me tranqüilizou ainda que um pouco; eis, porém, outra vez o mal: diga-me por favor; existem muitos desses indivíduos que têm o direito de matar outros, esses “extraordinários”? Eu, é claro, estou disposto a reverenciá-los, mas, convenha o senhor, será um horror se houver mesmo um número muito grande deles, não?
– Oh, não se preocupe com isso – continuou Raskólnikov no mesmo tom. – Em linhas gerais, as pessoas de pensamento novo, mesmo aquelas com um mínimo de capacidade para dizer ao menos alguma coisa nova, nascem em número inusitadamente baixo, até estranhamente baixo. A única coisa clara é que a ordem de nascimento das pessoas de todas essas categorias e subdivisões provavelmente é determinada, de modo bastante certo e preciso, por alguma lei da natureza. Essa lei, é claro, é hoje desconhecida, mas eu acredito que ela exista e posteriormente pode vir a ser conhecida. A imensa massa de pessoas, o material existe unicamente no mundo para, através de algum esforço, por algum processo até hoje misterioso, por meio de algum cruzamento de espécies e raças, finalmente fazer uma forcinha e acabar gerando em mil ao menos um indivíduo com autonomia, ainda que seja pouca. Talvez em cada dez mil nasça um (falo em termos aproximados, evidentes) com autonomia mais ampla, e em cada cem mil nasça um com autonomia ainda mais ampla. Dos indivíduos geniais nasce um entre milhões, e dos grandes gênios, os que dão acabamento à humanidade, nasce um após a passagem de muitos milhares de milhões na face da terra. Numa palavra, não dei uma olhada na retorta em que tudo isso acontece. Mas existe forçosamente e deve existir certa lei: aqui não pode haver acaso. (...)”

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI – foi um escritor russo, considerado um dos maiores romancistas da literatura russa e um dos mais inovadores artistas de todos os tempos. É tido como o fundador do existencialismo, mais frequentemente por Notas do Subterrâneo, descrito por Walter Kaufmann como a "melhor proposta para existencialismo já escrita."
A obra dostoievskiana explora a autodestruição, a humilhação e o assassinato, além de analisar estados patológicos que levam ao suicídio, à loucura e ao homicídio: seus escritos são chamados por isso de "romances de ideias", pela retratação filosófica e atemporal dessas situações. O modernismo literário e várias escolas da teologia e psicologia foram influenciadas por suas ideias.
Dostoiévski logrou atingir certo sucesso com seu primeiro romance, Pobre Gente, que foi imediatamente muito elogiado pelo poeta Aleksandr Nekrassov e por um dos mais importantes críticos da primeira metade do século XIX, Vladimir Belinski. Porém, o escritor não conseguiu repetir o sucesso até o retorno à Sibéria, quando escreveu o semibiográfico Recordações da Casa dos Mortos, sobre a prisão que sofrera. Posteriormente sua fama aumentaria, principalmente graças a Crime e Castigo.
Seu último romance, Os Irmãos Karamazov, foi considerado por Sigmund Freud como o melhor romance já escrito. Perigoso, segundo Stálin, até 1953 o currículo soviético para estudos universitários sobre o escritor o classificava como "expressão da ideologia reacionária burguesa individualista". Segundo ele mesmo, seu mal era uma doença chamada consciência. A obra de Dostoiévski exerce uma grande influência no romance moderno, legando a ele um estilo caótico, desordenado e que apresenta uma realidade alucinada

PAULO BEZERRA Professor, tradutor e ensaísta, tem graduação em História e Filologia com especialização em tradução, pela Lomonóssov State University, de Moscou, e em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Gama Filho/RJ. Nasceu no estado da Paraíba em 1940, morou em Moscou, na ex-União Soviética, entre os anos de 1963 e a1971, onde começou a traduzir, inicialmente como prática acadêmica no curso de tradução e, em seguida, na Rádio Moscou. Ao retornar ao Brasil, paralelamente ao magistério, iniciou um importante trabalho de tradução da língua russa para o português. Atualmente, Paulo Bezerra vem se consagrando como um dos mais requisitados para tradução da obra do russo Dostoievski. A literatura russa fascina o autor pela preocupação profunda com os problemas reais que afligem o ser humano e marcam a luta pela existência. Bezerra já traduziu mais de 30 títulos, nas mais diversas áreas de conhecimento e dos mais diversos autores, de Vigotski a Bakhtin, de Kopnin a Dostoievski. Pela obra traduzida, Paulo Bezerra recebeu três prêmios: Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (2002) e Prêmio Paulo Rónai (2002), da Fundação Biblioteca Nacional, por O idiota, de Dostoiévski, e Prêmio Jabuti da CBL (2º lugar, 2005) pela tradução de Os Demônios, do mesmo autor.

Algumas traduções publicadas:
Gogol, Nikolai. O capote e outras histórias
São Paulo: Editora 34, 2010.

Dostoievski, Fiódor.  Os Irmãos Karamazóv
São Paulo: Editora 34, 2008 - 1ª edição; 2009 - 2ª edição (Acordo Ortográfico)
APCA 2008 - melhor  tradução / Academia Brasileira de Letras 2009 – Tradução / Jabuti 2009 (3º lugar) - Tradução

Dostoievski, Fiódor. Bobók
São Paulo: Editora 34, 2005.

Dostoievski, Fiódor. Os demônios
São Paulo: Editora 34, 2003.

Dostoievski, Fiódor. O idiota
São Paulo: Editora 34, 2002.

Dostoievski, Fiódor. Crime e Castigo
São Paulo: Editora 34, 2001 - 1ª edição; 2009 - 6ª edição (Acordo Ortográfico)
Prêmio Paulo Rónai da BN de Melhor Tradução 2002

Stanislavsky, Constantin. Minha vida na arte.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

Zaslavskaia, Tatiana. A estratégia social da Perestroika.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

Bakhtin, M. Problemas da poética de Dostoievski.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.


Na próxima Roda de Leitura teremos a presença do russo Fiódor Dostoiévski através de um dos mais populares romances da literatura russa do século XIX, Crime e Castigo a ser decifrado por ninguém menos que Paulo Bezerra, seu premiado tradutor.