quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O que vem por aí...

Rodas de Leitura: Um mergulho nos clássicos

Para o segundo trimestre das Rodas de Leitura preparamos para vocês uma seleção imperdível de textos e autores:

Dia 14 de março: Milton Hatoum - Clássicos da Contemporaneidade: uma leitura de Dois Irmãos.

Dia 11 de abril: Cleonice Berardinelli - Concerto de Poesia Portuguesa.

Dia 9 de maio: Clássicos Universais: uma leitura de Crime e Castigo, de Dostoievsky.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O que rolou: Amir Haddad 14 de fevereiro de 2011

Amir Haddad e Suzana Vargas







Shakespeare bem humorado: as comédias, por Amir Haddad

Amir Haddad: Shakespeare bem humorado: as comédias - 14 de fevereiro de 2011

Amir Haddad:

Ator, diretor e professor de teatro. Fundou o Teatro Oficina em 1958. Ganhador de dois prêmios Molière, em 1969 e 1970. Foi professor da Escola de Teatro do Pará e na Escola de Teatro da Federação das Escolas Federais Isoladas no Rio de Janeiro. Pedagogo convidado da Escola Internacional de Teatro Latino-Americano e Caribe, em Havana. A partir de 1990, Amir aprofunda suas pesquisas em teatro de rua. Seu trabalho objetiva recuperar o sentido de festa do teatro e dramaticidade das festas populares e é reconhecido nacional e internacionalmente.


Noite de Reis (fragmento)
William Shakespeare
Tradução de Bárbara Heliodora



Ato I
Cena V

Casa de Olívia
(entram Maria e o Bobo)

Maria: Não, ou me diz onde andou ou então não abro a boca o suficiente para fazer passar nem sequer um fiapo de desculpa para você. A minha ama é capaz de enforcá0lo por sua ausência.

Bobo: Pois que me enforque. Quem já está bem enforcado neste mundo não precisa ter medo de bandeira.

Maria: Explique-se.

Bobo: Ninguém tem medo do que já não vê.

Maria: Isso é resposta esfarrapada. Eu sei onde nasceu o ditado “não tenho medo de bandeira”.

Bobo: Onde, senhora Mary?

Maria: Na guerra, nisso é que você vai acabar se metendo, com todas as suas tontices.

Bobo: Bem, que Deus dê a sabedoria a quem a tem, e que os bobos saibam usar seus talentos.

Maria: Ou você acaba enforcado por ficar ausente tanto tempo, ou será posto na rua – o que não é o mesmo que enforcá-lo?

Bobo: Há muito enforcamento que impediu mau casamento; e, se for posto na rua, que o verão me proteja.

Maria: Quer dizer, então, que está inabalável?

Bobo: Eu não diria tanto, mas estou firme em dois pontos.

Maria: Para, se um arrebentar, o outro agüentar; ou, se os dois arrebentarem, suas calças caírem.

Bobo: Bom, muito bom, na verdade! Continue assim. Se Sir Toby deixasse de beber, você seria um pedaço de Eva tão espirituoso quanto qualquer outro na Ilíria.

Maria: Chega, malandro; agora basta. Aí vem minha ama. É melhor apresentar desculpas sensatas. (Sai)

(Entra Olívia com Malvólio e outros Servidores)

Bobo: Espírito, se te apraz, faz-me bom de bobices! Os espirituosos que pensam possuir-te muitas vezes são só bobos, e eu que estou certo de não te ter posso passar por sábio. Pois, como diz Quinapalus, “melhor um bobo espirituoso que um espirituoso bobo”. Que Deus a abençoe, senhora.

Olívia: Levem embora o bobo.

Bobo: Não ouviram, camaradas? Levem embora a senhora.

Olívia: Chega, você é bobo que secou: para mim, chega. E, além disso, ficou desonesto.

Bobo: Duas faltas, madona, que bebida e bons conselhos podem consertar. Dando de beber ao bobo, ele não fica mais seco. Peça ao desonesto que se emende; se se emendar, não será mais desonesto; se não puder, que o remendão o remende. Qualquer coisa emendada é remendada; a virtude que escorrega fica só com remendos de pecado, e o pecado que se emenda fica remendado de virtude. Se esse silogismo simples servir, ótimo. Se não, que se há de fazer? O único cornudo é a calamidade, logo a beleza é uma flor. A senhora pediu que levassem embora quem é bobo; portanto, eu repito, levem-na embora.

Olívia: Senhor, eu pedi-lhes que o levassem.

Bobo: Erro de apreensão do mais alto grau. Senhora, cucullus non facit monachum, o que quer dizer que não uso roupa de bobo no meu cérebro. Madona, deixe-me provar-lhe que é boba.

Olívia: E pode faze-lo?

Bobo: Com a maior facilidade, madona.

Olívia: Apresente suas provas.

Bobo: Tenho de tomar-lhe o catecismo para isso, madona. Minha boa ratinha, responda-me.

Olívia: Na falta de outra tolice qualquer, ouvirei suas provas.

Bobo: Boa madona, por quem chora?

Olívia: Bom bobo, pela morte de meu irmão.

Bobo: Creio que a alma dele está no inferno, madona.

Olívia: Eu sei que a alma dele está no céu, bobo.

Bobo: Então é boba, madona, por chorar pela alma de seu irmão, que está no céu. Levem embora a boba, cavalheiros.

Olívia: O que pensa desse bobo, Malvólio? Ele não está se emendando?

Malvólio: Está, e há de continuar até que os golpes da morte o sacudam. A senilidade, que traz a decadência ao sábio, sempre melhora o bobo.

Bobo: Que Deus lhe mande, senhor, uma rápida senilidade, para o aprimoramento de sua bobice. Sir Toby jura que eu não sou nenhuma raposa, porém nem por dois vinténs dará a sua palavra de que o senhor não é bobo.

Olívia: O que diz a isso, Malvólio?

Malvólio: Espanta-me que Vossa Senhoria se deleite com malandro tão estúpido. Eu o vi no outro dia ser derrotado por um bobo de taverna que não tinha mais miolos que uma pedra. Olhe só agora, ele já não pode defender-se. A não ser que a senhora ria e lhe dê oportunidade, fica engasgado. Eu lhe digo que, para mim, sábios que muito cacarejam com bobices decoradas não passam de palhaços dos bobos.

Olívia: Você padece de egoísmo, Malvólio, e prova tudo com apetite destemperado. Ser generoso, livre de culpa e ter boa disposição é encarar como flechas sem ponta coisas que você considera balas de canhão. Não há calúnia em bobo da casa, mesmo quando só faz deblaterar, nem ofensa em homem sabidamente sábio, mesmo quando só faz recriminar.

Bobo: Que Mercúrio a cubra de esperteza e artimanha, por falar bem dos bobos.

(Entra Maria.)

Maria: Madame, está no portão um jovem que deseja muito falar com a senhora.

Olívia: Do Conde Orsino, não é?

Maria: Não sei, madame. É um jovem bem-apessoado e traz bela criadagem.

Olívia: Quem de minha casa o detém?

Maria: Seu parente, Sir Toby, madame.

Olívia: Tire-o de lá, por favor. Fala qual um louco. É uma vergonha. (Sai Maria.) Vá lá, Malvólio. Se for súplica do conde, eu estou doente ou então saí. Faça o que quiser, mas livre-se dele. (Sai Malvólio.) Agora viu, senhor, como suas momices estão gastas e as pessoas não gostam mais delas.

Bobo: Falou por nós, madona, como se seu filho mais velho fosse bobo. Que Júpiter entupa seu crânio de cérebro, pois – lá vem ele – um de seus parentes tem massa cinzenta fraquíssima.

(Entra Sir Toby.)

Olívia: Juro que já está meio bêbado. Quem está no portão, meu primo?

Toby: Um cavalheiro.

Olívia: Cavalheiro? Que cavalheiro?

Toby: Há um cavalheiro aqui. (Arrota.) Raios partam os arenques defumados. Então, bobo, o que há?

Bobo: Meu bom Sir Toby.

Olívia: Primo, primo, como caiu tão cedo nessa lassidão?

Toby: Devassidão? Desafio a devassidão. Há alguém no portão.

Olívia: Muito bem! Quem é ele?

Toby: Seja ele o demônio ou que queira, não me importa. Desde que eu tenha fé, é o que eu digo. Bem, tudo dá na mesma. (Sai.)

Olívia: Bobo, com o que se parece um homem bêbado?

Bobo: Com um afogado, um bobo e um louco. O primeiro trago dá-lhe a febre do bobo, o segundo o enlouquece e o terceiro o afogo.

Olívia: Vá buscar o médico-legista para ver meu primo, pois já atingiu o terceiro grau de bebida. Já se afogou. Vá cuidar dele.

Bobo: Por enquanto está só louco, e o bobo cuidará do louco.
(Sai.)

Malvólio: Madame, o rapazinho jura que há de lhe falar. Disse-lhe que estava doente; ele garante entender muito do assunto e, portanto, virá falar-lhe. Disse-lhe que estava dormindo. Parece que já previa isso também e, portanto, virá falar-lhe. O que devo dizer a ele, senhora? Tem resposta para todas as recusas.

Olívia: Diga-lhe que não irá falar comigo.

Malvólio: Já disse, e ele diz que ficará à sua porta como poste de delegacia ou plantado como um banco, mas que há de lhe falar.

Olívia: Que espécie de homem é ele?

Malvólio: Ora, da espécie humana.

Olívia: Mas homem de que maneiras?

Malvólio: Péssimas maneiras. Quer falar com a senhora, quer a senhora queira, quer não.
Olívia: Que aspecto e idade tem ele?

Malvólio: Não velho o bastante para ser homem, nem moço o bastante para ser menino; é como a vagem antes de ser ervilha, como a maçã que ainda não ficou vermelha. Ele está na mudança da maré, entre menino e homem. É muito bonito e fala muito bem. Parece que mal foi desmamado.

Olívia: Deixe-o entrar. Chame a minha tia.

Malvólio: Aia, a senhora está chamando. (Sai.)

(Entra Maria.)

Olívia: Dê-me o meu véu; vamos, jogue-o sobre o meu rosto. Ouçamos novamente o embaixador de Orsino.

(Entra Viola.)

Viola: Qual é a honrada senhora da casa?

Olívia: Fale comigo; responderei por ela. O que deseja?

Viola: Mais radiosa, requintada e inigualável das belezas – por favor, digam-me se esta é a senhora da casa, pois eu jamais a vi. Não gostaria de desperdiçar meu discurso, pois não só foi excepcionalmente bem escrito como também fiz grande esforço para decorá-lo. Minhas belas, não me menosprezem. Sou muito sensível, mesmo ao menor dos maus-tratos.

Olívia: Da onde vem, senhor?

Viola: Sei dizer muito pouco além do que estudei e essa pergunta não está incluída no meu papel. Gentil e bondosa donzela, dê-me garantia razoável de que é a senhora da casa, para eu poder continuar minha fala.

Olívia: O senhor é ator?

Viola: Não, meu perspicaz coração; e, no entanto, juro pela própria peçonha da malícia, não sou o que represento. A senhora é a ama desta casa?

Olívia: A não ser que me usurpe, sim, sou eu.

Viola: Se for ela, é certo que se usurpa, pois o que é seu para conceder não é seu para reter. Mas isso fica fora de minha incumbência. Continuarei minha fala em seu louvor, para depois revelar o âmago de minha mensagem.

Olívia: Vamos ao que importa. Dispenso-lhe os louvores.

Viola: Que pena, fiz muita força para estudá-los e são muito poéticos.

Olívia: Então é ainda mais provável que sejam fingidos. Peço-lhe que os guarde. Ouvi dizer que foi muito atrevido à minha porta, e permiti que entrasse mais para observá-lo do que para ouvi-lo. Se for louco, vá-se embora; se tiver uso da razão, seja breve. Não estou de lua para ouvir conversas tolas.

Maria: Quer enfurnar as velas, senhor? O caminho é por aqui.

Viola: Não, boa lambazeira; ainda vou flutuar um pouco aqui. Acalme um pouco o seu gigante, gentil senhora!

Olívia: Diga o que tem em mente.

Viola: Sou mensageiro.

Olívia: Por certo tem algo horrível a dizer-me, já que age com tão assustadora cortesia. Diga qual a sua missão.

Viola: É só para os seus ouvidos. Não trago prenúncios de guerra, nem exigências de vassalagem. Na mão trago a oliveira; minhas palavras são tão cheias de paz quanto de significado.

Olívia: No entanto, começou a falar de forma rude. Quem é? O que deseja?

Viola: A rudeza que exibi aprendi com a recepção que tive. O que sou e o que desejo são coisas tão secretas quanto a virgindade, divinas a seus ouvidos, profanas aos dos outros.

Olívia: Deixem-nos aqui sozinhos; ouçamos a palavra divina.
(Saem Maria e Criados.) Qual o seu texto?

Viola: Doce senhora –

Olívia: Uma doutrina reconfortante; tem muito a seu favor. De onde vem seu texto?

Viola: Do seio de Orsino.

Olívia: De seu seio? Em que capítulo de seu seio?

Viola: Segundo a Teologia, no primeiro de seu coração.

Olívia: Já o li. É heresia. Não tem mais a dizer?

Viola: Boa senhora, permita-me ver seu rosto.

Olívia: Tem encargo de seu senhor para negociar com o meu rosto?  Creio que já fugiu do seu texto. Porém abriremos a cortina para mostra-lhe o quadro. (Tira o véu.) Veja, senhor, assim era eu neste momento. Não está bem-feito?

Viola: É excelente se foi Deus quem fez tudo.

Olívia: É tudo indelével, senhor; resistirá ao vento e às intempéries.

Viola: Essa é a beleza em que a natureza
            Com mão hábil ligou o branco e o rubro.
            Senhora, mais cruel que qualquer outra
            Seria, se assim fosse para a cova
            Sem legar uma cópia sua para o mundo.

Olívia: Senhor, não terei coração duro. Distribuirei várias descrições de minha beleza. Ela será inventariada em cada partícula, cada detalhe, discriminadamente, em meu testamento. Por exemplo: item um, dois lábios, de vermelho comum; item dois, olhos cinza, incluindo as pálpebras; item três, um pescoço, um queixo, etc. Foi mandado aqui para elogiar-me?

Viola: Eu já vejo o que é: muito orgulhosa.
            Porém, mesmo demônio, inda é bela.
            O meu senhor a ama. Tal amor
            Merece paga, mesmo que a senhora
            Seja a própria rainha da beleza.

Olívia: De que forma então me ama ele?

Viola: Com toda a adoração, com fértil pranto,
            Com gemidos de amor, fogo em suspiros.

Olívia: Seu amo já me ouviu. Não posso amá-lo.
            Suponho-o virtuoso, sei que é nobre,
            De grandes posses, pura juventude;
            De boa fama, livre, sábio, bravo,
            E, em toda a proporção da natureza,
            Cheio de graças. Mas não posso amá-lo.
            Há muito ele devia tê-lo aceito.

Viola: Se eu a amasse com a chama de meu amo,
            Sofrendo tanto, quase morto em vida,
            Não veria razão nessa recusa,
            Não a compreenderia.

Olívia: O que faria?

Viola: Um ninho de salgueiros à sua porta,
            Que chame a minha alma nesta casa;
            Escreva cantos de amor sem ser amado
            Para cantar na noite mais escura;
            Grite seu nome ao eco das montanhas
            E faça os ventos, tão novidadeiros,
            Gritarem: “Olívia!” E não teria paz,
            Na terra nem no ar, minha senhora,
            Enquanto eu não tivesse a sua piedade.

Olívia: Seria muito. Qual a sua origem?

Viola: Acima do meu fado. Mas ’stou bem. Eu sou fidalgo.

Olívia: Volte a senhor:
            Não posso amá-lo. Chega de mensagens,
            A não ser que só volte pra dizer
            Como ele aceitou isso. Passe bem:
            Sou grata ao seu esforço. Gaste isso.

Viola: Não sou correio pago; guarde a bolsa.
            Recompense a meu amo, não a mim.
            Seja de pedra o coração que amar;
            Seu fervor, como hoje o do meu amor,
            Seja ignorado. Adeus, bela cruel. (Sai.)

Olívia: “Qual sua origem?”
            “Acima de meu fado. Mas ‘stou bem.
            Eu sou fidalgo.” E eu juro que o és.
            Língua, rosto, membros, atos, mente.
            Te dão cinco brasões. Mas calma, espera;
            Se fosse ele o amo... Mas que é isso?
            Será tão fácil contrair a peste?
            Parece-me sentir que as perfeições
            Deste jovem, por vias invisíveis,
            Penetram-me os olhos. Pois que seja!
            Olá, Malvólio!

(Entra Malvólio.)

Cena II

Na casa de Olívia
(Entram Maria e o Bobo.)

Maria: Vem, por favor, põe esta capa e esta barba; faz com que ele acredite que é Sir Topas, o cura; vem depressa. E enquanto isso eu chamarei Sir Toby. (Sai.)

Bobo: Vou vesti-la e disfarçar-me com ela, e bem quisera que eu fosse o primeiro a usar tal traje para fingir. Não sou alto o bastante para honrar o sacerdócio, nem bastante magro para parecer um sábio; porém ser tido como honesto e bom cidadão vale tanto quanto ser chamado de prudente e estudioso. Lá vem meus comparsas.

(Entram Sir Toby e Maria.)

Toby: Que Júpiter o abençoe, mestre cura.

Bobo: Bonos dies, Sir Toby, já que, como o velho eremita de Praga, que jamais viu papel nem tinta disse, muito espirituosamente, à sobrinha do Rei Gorboduc: “O que é é”; assim, eu sendo mestre cura, sou mestre cura, pois oq eu é “o quê”? E “é”, senão é?

Toby: A ele, Sir Topas.

Bobo: Olá, olá! Paz a esta prisão!

Toby: O safado finge bem; é um safado de bem.

Malvólio (de dentro): Quem chama aí?

Bobo: Sir Topas, o cura, que vem visitar Malvólio, o louco.

Malvólio: Sir Topas, Sir Topas, bom Sir Topas, vá procurar minha senhora.

Bobo: Pra fora, demônio hiperbólico! Como entrou assim dentro desse homem? E ainda fica só falando de mulheres?

Toby: Muito bem, mestre cura.

Malvólio: Sir Topas, nunca houve homem tão injustiçado. Bom Sir Topas, não pense que estou louco. Eles me atiraram aqui, na mais tenebrosa escuridão.

Bobo: Que vergonha, seu satanás desonesto. (Só o trato assim, com tanta delicadeza, por ser daqueles tão bonzinhos que são delicados até com o próprio diabo.) Mas disse que sua cela está escura?

Malvólio: Como o inferno, Sir Topas.

Bobo: Ora, ela tem janelões transparentes como uma barricada, e clarabóias, tanto para o norte quanto para o sul, que brilham como ébano, e ainda se queixa de obstrução?

Malvólio: Eu não estou louco, Sir Topas. E digo-lhe que a cela está escura.

Bobo: Louco, está enganado. Eu digo que não há escuridão senão a ignorância, na qual o senhor está mais perdido do que os egípcios em seu nevoeiro.

Malvólio: Eu digo que esta cela está tão escura quanto a ignorância, inda que a ignorância seja escura como o inferno; e digo que jamais homem algum sofreu tais abusos. Não sou mais louco que o senhor. Pode pôr-me à prova com qualquer assunto que faça sentido.

Bobo: Qual é a opinião de Pitágoras em relação aos pássaros selvagens?

Malvólio: Que é possível que a alma de nossa avó acabe por habitar um pássaro.

Bobo: E qual sua opinião a respeito dessa opinião?

Malvólio: Tenho a mais alta opinião acerca da alma e não aprovo de modo algum a opinião dele.

Bobo: Adeus! Pode continuar na escuridão. Só quando aplaudir a opinião de Pitágoras é que eu hei de reconhecer a sua sanidade, ou quando tiver medo de matar uma galinhola, para não deixar desabrigada a alma da sua avó. Passe muito bem.

Malvólio: Sir Topas! Sir Topas!

Toby: Meu Sir Topas das maravillas!

Bobo: Ora essa; eu sou pau-para-toda-obra.

Maria: Poderias ter feito a mesma coisa sem a capa e a barba. Ele não te vê.

Toby: Vai falar-lhe com tua própria voz e vem dizer-me como ele reage. (para Maria.) Eu queria ver-me livre de toda essa encrenca. Se houver um bom modo de deixá-lo livre, é o que gostaria de fazer, pois já estou tão afundado em ofensas à minha sobrinha que não me sinto seguro para levar esta marotice até o fim. (para o Bobo.) Daqui a pouco vem até meu quarto! (Sai com Maria.)

Bobo (cantando): “Olá, Robin, alegre Robin,
                              Diz como está minha amada.”

Malvólio: Bobo!

Bobo: “Eu sei que a minha amada é cruel.”

Malvólio: Bobo!

Bobo: “Ai de mim, por que será?”

Malvólio: Bom bobo, se queres merecer a minha consideração, arranja-me uma vela, pena, tinta e papel. Por minha palavra de cavalheiro, te ficarei sempre grato.

Bobo: Mestre Malvólio?

Malvólio: Sim, bom bobo.

Bobo: Ai, ai, senhor, como conseguiu perder logo os cinco sentidos?

Malvólio: Bobo, nunca ninguém foi tão vergonhosamente abusado. Estou tão senhor de meus sentidos, bobo, quanto tu.

Bobo: Mas só tanto quanto eu? Então está mesmo louco, se não está melhor dos sentidos que um bobo.

Malvólio: Eles estão me tratando como um lixo: me prenderam no escuro, me mandaram um sacerdote asnático, e estão fazendo tudo o que podem para me fazer perder a razão.

Bobo: Cuidado com o que diz, Malvólio. O sacerdote está aqui. (Imitando Sir Topas) Malvólio, Malvólio, que os céus restaurem teus sentidos. Procura dormir e deixa de lado essas vãs baboseiras.

Malvólio: Sir Topas!

Bobo: (Imitando Sir Topas) Meu bom rapaz, não converse com ele. (como o Bobo) Quem, eu, senhor? Eu não. Deus esteja conosco, Sir Topas! (como Sir Topas) Amém, amém. (como o Bobo) Nos amaremos, senhor.

Malvólio: Bobo, bobo, escuta, bobo!

Bobo: Ai, ai, senhor, tenha paciência. O que disse, senhor? Fui repreendido por ter conversado com o senhor!

Malvólio: Bom bobo, ajuda-me com um pouco de luz e papel. Digo-te que estou tão são do espírito quanto qualquer homem na Ilíria.

Bobo: Quem dera que assim fosse, senhor.

Malvólio: Juro por esta mão que estou. Bom bobo, um pouco de tinta, papel e luz; e leva o que escreverei à minha ama. Ganharás mais com isso do que jamais ganhaste por levar qualquer outra carta.

Bobo: Vou ajudá-lo. Mas diga-me a verdade, o senhor está mesmo louco ou está só fingindo?

Malvólio: Acredite que não estou. Digo a verdade.

Bobo: Não, eu só acredito em louco depois de ver seus miolos. Vou buscar a luz, o papel e a tinta que pediu.

Malvólio: Bobo, eu te darei as mais altas recompensas. Por favor, vá logo.

Bobo (cantando):
            “Já vou senhor,
            Vou já, senhor,
            Mas logo voltarei.
            Bem sem treta,
            Qual capeta,
            A ti ajudarei.
            Aquele que no aperto,
            Sem saber que é certo,
            Gritar ‘vem cá’ pro diabo
            Ou, feito tonto,
            ‘Demo, estou pronto’
            Está bem arranjado” (sai.)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O que rolou: José Castello e Maria Hena Lemgruber, 10 de janeiro de 2011

Mergulho na Alice de Lewis Carroll

Auditório Machado de Assis

José Castello, Maria Hena Lemguber e Suzana Vargas

José Castello

Maria Hena Lemgruber

José Castello, Suzana Vargas e Maria Hena Lemgruber

José Castello e Maria Hena Lemgruber: Mergulho na Alice de Lewis Carroll - 10 de janeiro de 2011

José Castello:
Escritor e crístico literário. Cronista de O Globo. Autor de Vinicius de Moraes: O poeta da paixão (Companhia das Letras, 1993), Inventário das sombras (Record, 1999), A literatura na poltrona (Record, 2007), Ribamar (Bertrand, 2010), entre outros.

Maria Hena Lemgruber:
Psicanalista e educadora. Foi coordenadora pedagóciga da Escola Senador Corrêa, da Escola Israelita Eliezer Steinbarg e curadora da 1ª Mostra de Cinema e Educação. Autora do Projeto Reflexões Compartilhadas.



Capítulo 1
Pela toca do Coelho


ALICE ESTAVA COMEÇANDO a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, “e de que serve um livro”, pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?”.
         Assim, refletia com seus botões (tanto quanto podia, porque o calor a fazia se sentir sonolenta e burra) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de se levantar e colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo por ela.
         Não havia nada de tão extraordinário nisso; nem Alice achou assim tão esquisito ouvir o Coelho dizer consigo mesmo: “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!” (quando pensou sobre isso mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter ficado espantada, mas na hora tudo pareceu muito natural); mas quando viu o Coelho tirar um relógio do bolso do colete e olhar as horas, e depois sair em disparada, Alice se levantou num pulo, porque constatou subitamente que nunca tinha visto antes um coelho com bolso de colete, nem com relógio para tirar de lá, e, ardendo de curiosidade, correu pela campina atrás dele, ainda a tempo de vê-lo se meter a toda a pressa numa grande toca de coelho debaixo da cerca.
          No instante seguinte, lá estava Alice se enfiando na toca atrás dele, sem nem pensar de que jeito conseguiria sair depois.
         Por um trecho, a toca de coelho seguia na horizontal, como um túnel, depois se afundava de repente, tão de repente que Alice não teve um segundo para pensar em parar antes de se ver despencando num poço muito fundo.
Ou o poço era muito fundo, ou ela caia muito devagar, porque enquanto caia teve tempo de sobra para olhar à sua volta e imaginar o que iria acontecer em seguida. Primeiro, tentou olhar para baixo e ter uma ideia do que a esperava, mas estava escuro demais para se ver alguma coisa; depois olhou para as paredes do poço, e reparou que estavam forradas de guarda-louças e estantes de livros; aqui e ali, viu mapas e figuras pendurados em pregos. Ao passar, tirou um pote de uma das prateleiras; o rótulo dizia “GELEIA DE LARANJA”, mas para seu grande desapontamento estava vazio: como não queria soltar o pote por medo de matar alguém , deu um jeito de metê-lo num dos guarda-louças por que passou na queda.
         “Bem!” pensou Alice, “depois de uma queda desta, não vou me importar nada de levar um trambolhão na escada! Como vão me achar corajosa lá em casa! Ora, eu não diria nadinha, mesmo que caísse do topo da casa!” (O que muito provavelmente era verdade.)
         Caindo, caindo, caindo. A queda não terminaria nunca? “Quantos quilômetros será que já caí até agora?” disse em voz alta. “Devo estar chegando perto do centro da Terra. Deixe-me ver: isso seria a uns seis mil e quinhentos quilômetros de profundidade, acho...” (pois, como você vê, Alice aprendera várias coisas desse tipo na escola e, embora essa não fosse uma oportunidade muito boa de exibir seu conhecimento, já que não havia ninguém para escutá-la, era sempre bom repassar) “...sim, a distancia certa é mais ou menos essa... mas, além disso, para que Latitude ou Longitude será que estou indo?” (Alice não tinha a menor ideia do que fosse Latitude, nem do que fosse Longitude, mas lhe pareciam palavras imponentes para se dizer.)
         Logo recomeçou. “Gostaria de saber se vou cair direto através da Terra! Como vai ser engraçado sair no meio daquela gente que anda de cabeça para baixo! Os antipatias, acho...” (desta vez estava muito satisfeita por não haver ninguém escutando, pois aquela não parecia mesmo ser a palavra certa) “...mas vou ter de perguntar a eles o nome do país. Por favor, senhora, aqui é a Nova Zelândia? Ou a Austrália?” (e tentou fazer uma mesura enquanto falava... imagine fazer mesura quando se está despencando no ar! Você acha que conseguiria?) “E que menininha ignorante ela vai achar que sou! Não, não convém perguntar nada: talvez eu veja o nome escrito em algum lugar.”
         Caindo, caindo, caindo. Como não havia mais nada a fazer, Alice logo começou a falar de novo. “Tenho a impressão de que Dinah vai sentir muita falta de mim esta noite!” (Dinah era a gata.) “Espero que se lembrem de seu pires de leite na hora do chá. Dinah, minha querida! Queria que você estivesse aqui embaixo comigo! Pena que não haja nenhum camundongo no ar, mas você poderia apanhar um morcego, é muito parecido com camundongo. Mas será que gatos comem morcegos?” E aqui Alice começou a ficar com muito sono, e continuou a dizer para si mesma, como num sonho: “Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?” e às vezes “Morcegos comem gatos?” , pois, como não sabia responder a nenhuma das perguntas, o jeito como as fazia não tinha muita importância. Sentiu que estava cochilando e tinha começado a sonhar que estava andando de mãos dadas com Dinah, dizendo a ela, muito séria: “Vamos, Dinah, conte-me a verdade: algum dia você já comeu um morcego?” quando subitamente, bum! bum! caiu sobre um monte de gravetos e folhas secas: a queda terminara.
         Alice não ficou nem um pouco machucada, e num piscar de olhos estava de pé. Olhou para cima, mas lá estava tudo escuro; diante dela havia um outro corredor comprido e o Coelho Branco ainda estava à vista, andando ligeiro por ele. Não havia um segundo a perder; lá se foi Alice como um raio, tendo tempo apenas de ouvi-lo dizer, ao dobrar uma esquina: “Por minhas orelhas e bigodes, como está ficando tarde!” Ela estava bem rente a ele, mas quando dobrou a esquina não havia mais sinal do Coelho Branco: viu-se num salão comprido e baixo, iluminado por uma fileira de lâmpadas penduradas no teto.
         Havia portas ao redor do salão inteiro, mas estavam todas trancadas; depois de percorrer todo um lado e voltar pelo outro, experimentando cada porta, caminhou desolada até o meio, pensando como haveria de sair dali.
         De repente topou com uma mesinha de três pernas, feita de vidro maciço; sobre ela não havia nada, a não ser uma minúscula chave de ouro, e a primeira ideia de Alice foi que devia pertencer a uma das portas do salão; mas, que pena! ou as fechaduras eram grandes demais, ou a chave era pequena demais, de qualquer maneira não abria nenhuma delas. No entanto, na segunda rodada, deu com uma cortina baixa que não havia notado antes; atrás dela havia uma portinha de uns quarenta centímetros de altura: experimentou a chavezinha de ouro, que, para sua grande alegria, serviu!
         Abriu a porta e descobriu que dava para uma pequena passagem, não muito maior que um buraco de rato: ajoelhou-se e avistou, do outro lado do buraco, o jardim mais encantador que já se viu. Como desejava sair daquele salão escuro e passear entre aqueles canteiros de flores radiantes e aquelas fontes de água fresca! Mas não era capaz nem de enfiar a cabeça pelo vão da porta, “e mesmo que conseguisse enfiar a cabeça”, pensou a pobre Alice, “isso de pouco adiantaria sem meus ombros. Ah, como gostaria de poder me fechar como um telescópio! Acho que conseguiria, se soubesse pelo menos começar.” Pois, vejam bem, havia acontecido tanta coisa esquisita ultimamente que Alice tinha começado a pensar que raríssimas coisas eram realmente impossíveis.
         Como ficar esperando junto da portinha parecia não adiantar muito, voltou até a mesa com uma ponta de esperança de conseguir achar outra chave sobre ela, ou pelo menos um manual com regras para encolher pessoas como telescópio; dessa vez achou lá uma garrafinha (“que com certeza não estava aqui antes”, pensou Alice), em cujo gargalo estava enrolado um rótulo de papel com as palavras “BEBA-ME” graciosamente impressas em letras graúdas.
         Era muito fácil dizer “Beba-me”, mas a ajuizada pequena Alice não iria fazer isso assim às pressas. “Não, primeiro vou olhar”, disse, “e ver se está escrito ‘veneno’ ou não”; pois lera muitas historinhas divertidas sobre crianças que tinham ficado queimadas e sido comidas por animais selvagens e outras coisas desagradáveis, tudo porque não se lembravam das regrinhas simples que seus amigos lhes haviam ensinado: que um atiçador em brasa acaba queimando sua mão se você insistir em segurá-lo por muito tempo; quando você corta o dedo muito fundo com uma faca, geralmente sai sangue; e ela nunca esquecera que, se você bebe muito de uma garrafa em que está escrito “veneno”, é quase certo que vai se sentir mal, mais cedo ou mais tarde.
         Como porém nessa garrafa não estava escrito “veneno”, Alice se arriscou a provar e, achando o gosto muito bom (na verdade era uma espécie de sabor misto de torta de cereja, creme, abacaxi, peru assado, puxa-puxa e torrada quente com manteiga), deu cabo dela num instante.

“Que sensação estranha!” disse Alice; “devo estar encolhendo como um telescópio!”
         E estava mesmo: agora só tinha vinte e cinco centímetros de altura e seu rosto se iluminou à ideia de que chegara ao tamanho certo para passar pela portinha e chegar àquele jardim encantador. Primeiro, no entanto, esperou alguns minutos para ver se ia encolher ainda mais: a ideia a deixou um pouco nervosa; “pois isso poderia acabar”, disse Alice consigo mesma, “me fazendo sumir completamente, como uma vela. Nesse caso, como eu seria?” E tentou imaginar como é a chama de uma vela depois que a vela se apaga, pois não conseguia se lembrar de jamais ter visto tal coisa.
         Um pouco depois, descobrindo que nada mais acontecera, decidiu ir imediatamente para o jardim; mas, ai da pobre Alice! quando chegou à porta, viu que tinha esquecido a chavezinha de ouro e, quando voltou à mesa para pegá-la, constatou que não conseguia alcançá-la: podia vê-la muito bem através do vidro, e fez o que pôde para tentar subir por uma das pernas da mesa, mas era escorregadia demais; tendo se cansado de tentar, a pobre criaturinha sentou no chão e chorou.
         “Vamos, não adianta nada chorar assim!” disse Alice para si mesma, num tom um tanto áspero, “eu a aconselho a parar já!” Em geral dava conselhos muito bons para si mesma (embora raramente os seguisse), repreendendo-se de vez em quando tão severamente que ficava com lágrimas nos olhos; certa vez teve a ideia de esbofetear as próprias orelhas por ter trapaceado num jogo de croqué que estava jogando contra si mesma, pois essa curiosa criança gostava muito de fingir ser duas pessoas. “Mas agora”, pensou a pobre Alice, “não adianta nada fingir ser duas pessoas!
Ora, mal sobra alguma coisa de mim para fazer uma pessoa apresentável!”
         Pouco depois deu com os olhos numa caixinha de vidro debaixo da mesa: abriu-a, e encontrou dentro um bolo muito pequeno, com as palavras “COMA-ME” lindamente escritas com passas sobre ele. “Bem, vou comê-lo”, disse Alice; “se me fizer crescer, posso alcançar a chave; se me fizer diminuir, posso me esgueirar por baixo da porta; assim, de uma maneira ou de outra vou conseguir chegar ao jardim; para mim tanto faz!”
         Comeu um pedacinho, e disse para si mesma, aflita, “Para cima ou para baixo? Para cima ou para baixo?”, com a mão sobre a cabeça para sentir em que direção estava indo, ficando muito surpresa ao verificar que continuava do mesmo tamanho: não há dúvida de que isso geralmente acontece quando se come bolo, mas Alice tinha se acostumado tanto a esperar só coisas esquisitas acontecerem que lhe parecia muito sem graça e maçante que a vida seguisse da maneira habitual.
         Assim, pôs mãos à obra e, num segundo, deu cabo do bolo. 

Fragmento de Alice: Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do espelho e o que Alice encontrou por lá (Lewis Carroll)

O que rolou: Cristovão Tezza 13 de dezembro de 2010

Cristovão Tezza


Cristovão Tezza e Suzana Vargas

Auditório Machado de Assis

Suzana Vargas e Cristovão Tezza

Cristovão Tezza: o filho eterno e novas ficções - 13 de dezembro de 2010

Cristovão Tezza:
Escritor e professor. Autor, entre outros, de O filho eterno (Record, 2007) que recebeu o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano; Prêmio Jabuti 2008 de melhor romance; Prêmio Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa (1º lugar), entre outros prêmios.

            “– Acho que é hoje – ela disse. – Agora – completou, com a voz mais forte, tocando-lhe o braço, porque ele é um homem distraído.
            Sim, distraído, quem sabe? Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver. A rigor, exceto por um leque de ansiedades felizes, ele não tem nada, e não é ainda exatamente nada. E essa magreza semovente de uma alegria agressiva, às vezes ofensiva, viu-se diante da mulher grávida quase como se só agora entendesse a extensão do fato: um filho. Um dia ele chega, ele riu, expansivo. Vamos lá!
            A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava já havia quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguardavam o elevador, à meia-noite. Ela está pálida. As contrações. A bolsa, ela disse – algo assim. Ele não pensava em nada – em matéria de novidade, amanhã ele seria tão novo quanto o filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou-se de uma garrafinha caubói de uísque, que colocou no outro bolso; no primeiro estavam os cigarros. Um cartum: a figura fuma um cigarro atrás do outro na sala da espera até que a enfermeira, o médico, alguém lhe mostra um pacote e lhe diz alguma coisa muito engraçada, e nós rimos. Sim, há algo de engraçado nesta espera. É um papel que representamos, o pai angustiado, a mãe feliz, a criança chorando, o médico sorridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos dá parabéns, a vertigem de um tempo que, agora, se acelera em desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em torno de um bebê, para só estacionar alguns anos depois – às vezes nunca. Há um cenário inteiro montado para o papel, e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, também. Ele merecerá respeito. Há um dicionário inteiro de frases adequadas para o nascimento. De certa-forma – agora ele dava partida no fusca amarelo (eles não dizem nada, mas sentem uma coisa boa no ar) e cuidou para não raspar o pára-lama na coluna, como já aconteceu duas vezes – ele também estaria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos edificante. Embora continuasse não estando onde estava – essa a sensação permanente, por isso fumava tanto, a máquina inesgotável pedindo gás. É um terreno inteiro de idéias: pisando nele, não temos coisa alguma, só a expectativa de um futuro vago e mal desenhado. Mas eu também não tenho nada ainda, ele diria, numa espécie metafísica de competição. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bem, um filho – e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando em alguma coisa enfim sólida, uma fotografia publicitária da família congelada na parede. Não: ele está em outra esfera da vida. Ele é um predestinado à literatura – alguém necessariamente superior, um ser para o qual as regras do jogo são outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade é discreta, tolerante e sorridente. Ele vive à margem: isso é tudo. Não é ressentimento, porque ele não está ainda maduro para o ressentimento, essa força que, em algum momento, pode nos pôr agressivamente em nosso lugar. Talvez o início dessa contraforça (mas ele seria incapaz de saber, tão próximo assim do instante presente) seja o fato de que jamais conseguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro. Uma tensão que quase sempre escapa pelo riso, a libertação que ele tem.
            No balcão da maternidade a moça, gentil, pede um cheque de garantia, e as coisas se passam rápidas demais, porque alguém está levando sua mulher para longe, sim, sim, a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os trâmites – e mais uma vez tem dificuldade de preencher o espaço da profissão, quase ele diz “quem tem profissão é a minha mulher. Eu” – e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a mulher também, mas a afetividade se transforma, sob olhos alheios, em solenidade – alguma coisa maior, parece, está acontecendo, uma espécie de teatro se desenha no ar, somos delicados demais para o nascimento e é preciso disfarçar todos os perigos desta vida, como se alguém (a imagem é absurda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sente diante dos hospitais, dos prédios públicos, das instituições solenes, de colunas, halls, guichês, abóbadas, filas, da sua granítica estupidez – a gramática da burocracia repete-se também ali, que é um espaço pequeno e privado. Mais tarde, ele se vê em alguma sala diante da mulher na maca, que, pálida, sorri para ele, eles tocam as mãos, tímidos, quase como quem comete uma transgressão. O lençol é azul. Há uma assepsia em tudo, uma ausência bruta de objetos, os passos fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angústia da falsidade, há um erro primeiro em algum lugar, e ele não consegue localizá-lo, mas em seguida não pensa mais nisso. Os segundos escorrem.
            Dizem alguma coisa que ele não ouve; e na espera, perde a noção do tempo – que horas são? Noite avançada. Agora está sozinho num corredor ao lado de uma rampa vazia e em frente a duas portas basculantes, com um vidro circular no centro de cada lâmina por onde às vezes ele espia mas nada vê. Ele não pensa em coisa alguma, mas, se pensasse, talvez dissesse: estou como sempre estive – sozinho. Acendeu um cigarro, feliz: e isso é bom. Deu um gole do uísque que tirou do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coisas vão bem – ele não pensava no filho, pensava nele mesmo, e isso incluía a totalidade de sua vida, mulher, filho literatura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada realmente bom. Pilhas de maus poemas, dos 13 anos até o mês passado: O filho da primavera. A poesia arrasta-o sem piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas é preciso dizer alguma coisa sobre o que está acontecendo, e ele não sabe exatamente o que está acontecendo. Tem a vaga sensação de que as coisas vão dar certo, porque são frutos do desejo; e quem está à margem, arrisca – ou estaria encaixado na subvida do sistema, essa merda toda, ele quase declama, e dá outro gole de uísque e acende outro cigarro. Aos 28 anos não acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe muito, dá risadas prolongadas e inconvenientes, lê caoticamente e escreve textos que atafulham a gaveta. Um gancho atávico ainda o prende à nostalgia de uma comunidade de teatro, que freqüenta uma vez por ano, numa prolongada dependência ao guru da infância, uma ginástica interminável e insolúvel para ajustar o relógio de hoje à fantasmagoria de um tempo acabado. Filhote retardatário dos anos 70, impregnado da soberba da periferia da periferia, vai farejando pela intuição alguma saída. É difícil renascer, ele dirá, alguns anos depois, mais frio. Enquanto isso, dá aulas particulares de redação e revisa compenetrado teses e dissertações de mestrado sobre qualquer tema. A gramática é uma abstração que aceita tudo. Desistiu de ser relojoeiro, ou foi desistido pela profissão, um dinossauro medieval. Se ainda tivesse a dádiva do comércio, atrás de um balcão. Mas não: escolheu consertar relógios, o fascínio infantil dos mecanismos e a delicadeza inútil do trabalho manual.
            E no entanto sente-se um otimista – ele sorri, vendo-se do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real. Sozinho no corredor, dá outro gole de uísque e começa a ser tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam. Um cromo publicitário, e ele ri do paradoxo: quase como se o simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolação ao sistema, mas isso não é necessariamente mau, desde que estejamos “inteiros”, sejamos “autênticos”, “verdadeiros” – ainda gostava dessas palavras altissonantes para o uso próprio, a mitologia dos poderes da pureza natural contra os dragões do artifício. Ele já começa a desconfiar dessas totalidades retóricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas – de fato, nunca se livrou completamente desse imaginário, que, no fundo da alma, significava manter o pé atrás, atento, em todos os momentos da vida, para não ser devorado pelo violento e inesgotável poder do lugar-comum e da impessoalidade. Era preciso que a “verdade” saísse da retórica e se transformasse em inquietação permanente, uma breve utopia, um brilho nos olhos.
            Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entrando no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daquele momento, uma solenidade para uso próprio, íntimo, intransferível. Como o diretor de uma peça de teatro indicando ao ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se até ali; sorria. Veja como você tira o cigarro da carteira, sentado sozinho neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho. Cruze as pernas. Pense: você não quis acompanhar o parto. Agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos – uma participação quase religiosa. Tudo parece que está virando religião. Mas você não quis, ele se vê dizendo. É que o meu mundo é mental, talvez ele dissesse, se fosse mais velho. Um filho é a idéia de um filho; uma mulher é a idéia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a idéia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de idéias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa.    
            Ali, era enfim a sensação de um tempo
parado, suspenso. Naquele silêncio iluminado, em que pequenos ruídos distantes – passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa – ganhava a solenidade de um breve eco, ele imagina a mudança de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para que as coisas não mudem muito. Tem energia de sobra para ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos intervalos, fumando bastante, dando risadas e contando histórias, enquanto a mulher se recupera. Seria agora um pai, o que sempre dignifica a biografia. Será um pai excelente, ele tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de mundo. Já tem pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de alguns dos versos de O filho da primavera – a professora amiga vai publicá-lo na Revista de Letras. Sim, os versos são bonitos, ele sonhou. O poeta é bom conselheiro. Faça isso, seja assim, respire esse ar, olhe o mundo – as metáforas, uma a uma, evocam a bondade humana. Kipling da província, ele se sente impregnado de humanismo. O filho será a prova definitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz alta, no silencio daquele corredor final, poucos minutos antes de sua nova vida. Era como se o espírito comunitário religioso que florescia secretamente na alma do país, todo o sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracionalismo, sua transcendência etérea, a paz celestial dos cordeiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou livros-texto – vale tudo, ó Senhor! –, encontrasse também no poeta marginal, talvez principalmente nele, o seu refúgio. O empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos, sandálias franciscanas, as portas da percepção, vida natural, sexo livre, somos todos autênticos. Sim, era preciso um contrapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como várias vezes nos matou. Há um descompasso nesse projeto supostamente pessoal, mas isso ele ainda não sabe, ao acaso de uma vida renitentemente provisória; a minha vida não começou ainda, ele gostava de dizer, como quem se defende da própria incompetência – tantos anos dedicados a... a o que mesmo? Às letras, à poesia, à vida alternativa, à criação, a alguma coisa maior que ele não sabe o que é – tantos anos e nenhum resultado! Ficar sozinho é uma boa defesa. Vivendo numa cidade com gênios agressivos em cada esquina, ele contempla a magreza de seus contos, finalmente publicados, onde encontra defeitos cada vez que abre uma página. O romance juvenil lançado nacionalmente vai se encerrar na primeira edição, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o editor de São Paulo, daqui a alguns meses. “É preciso cortar esse parágrafo na segunda edição porque as professorinhas do interior estão reclamando.” Desistiu do livro.
            Ele não sabe ainda, mas já sente que aquilo não é a sua literatura. Três meses antes terminou O terrorista lírico, e parece que alguma coisa melhor começa ali, ainda informe. Alguém se debatendo para se livrar da influência do guru, tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da percepção, sob a frieza da razão. Ele não é mais um poeta. Perdeu para sempre o sentimento do sublime, que, embora soe envelhecido, é o combustível necessário para escrever poesia. A idéia do sublime não basta, ele começa a vislumbrar – com ela, chegamos só ao simulacro. É preciso ter forças e peito para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no ridículo. Há algo incompatível entre mim e a poesia, ele se diz, defensivo – assumir a poesia, parece, é assumir uma religião, e ele, desde sempre, é alguém completamente desprovido de sentimento religioso. Um ser que se move no deserto, ele talvez escrevesse, com alguma pompa, para definir a própria solidão. A solidão como um projeto, não como uma tristeza. Eu ainda não consegui ficar sozinho, conclui, com um fio de angústia – e agora (ele olha para a porta basculante, sem pensar) nunca mais. Começou há pouco a escrever outro romance, Ensaio da Paixão, em que – ele imagina – passará a limpo sua vida. E a dos outros, com a língua da sátira. Ninguém se salvará. Três capítulos prontos. É um livro alegre, ele supõe. Eu preciso começar, de uma vez por todas, ele diz a ele mesmo, e só escrevendo saberá quem é. Assim espera. São coisas demais para organizar, mas talvez justo por isso ele se sinta bem, feliz, povoado de planos.
            Súbito, o médico – por quem nunca sentiu simpatia, e portanto nada espera dele – abre as portas basculantes, como sempre sem sorrir. Nenhuma novidade na ausência de sorriso, daí porque, pai moleque, mal ocultando a garrafinha de uísque, não se perturbou. O homem tirava as luvas verdes das mãos, como quem encerra uma tarefa desagradável – por alguma razão foi essa a imagem absurda, certamente falsa, que lhe ficou daquele momento.
            – Tudo bem? – ele pergunta, por perguntar: a cabeça já está no mês seguinte, sete meses depois, um ano e três meses, cinco anos à frente, o filho crescendo, a cara dele.
            – É um menino. – Também nenhuma surpresa: eu tinha certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito, se falasse. – A mãe está muito bem.
            E desapareceu por onde veio. (...)”

Fragmento de O filho eterno, de Cristovão Tezza, Record 2007.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Projeto Rodas de Leitura - O Retorno

O Projeto Rodas de Leitura – evento pioneiro no trabalho de formar platéia para leitura e proporcionar ao público em geral um contato prazeroso com o mundo do livro e seus autores – está de volta. Nesta retomada e em tempos de cultura virtual, seus objetivos permanecem inalterados pois reconhece na atividade leitora uma total independência em relação ao seu suporte, ou seja: virtual ou não, ler será sempre um modo de compreensão da vida e de nós mesmos, de aquisição de conhecimento, informação e autocrítica.
Dessa maneira, os métodos de abordagem do projeto continuam os mesmos: o autor ou mediador de leitura (em geral um professor, um crítico literário ou mesmo um apaixonado por livros) lê e a platéia acompanha com o texto na mão, iniciando-se depois um diálogo sobre o livro proposto. Não se trata de entrevista, palestra ou aula mas de uma conversa orientada, uma chave de entendimento para conteúdos. Nessa conversa,  o livro é apresentado ao público como protagonista insustituível de compreensão da realidade e como um companheiro capaz de nos auxiliar na tarefa de vencer os tantos desafios que encontramos em nossa vida pessoal e profissional.
Neste primeiro trimestre (Dezembro 2010, Janeiro 2011, Fevereiro 2011), teremos a presença destes grandes autores - mas, sobretudo, grandes leitores - que são Cristovão Tezza, José Castello, Maria Hena Lemgruber e Bárbara Heliodora trazendo-nos as leituras imperdíveis de textos autorais ou não, mas de alto significado para a cultura literária universal.
A Estação das Letras em parceira com a Fundação Biblioteca Nacional, com o apoio do Oi Futuro e patrocínio da Oi, alegra-se em proporcionar aos leitores essa festa da leitura que as Rodas costumam promover, que agora começa e se estenderá ao longo de 2011.
(Suzana Vargas – Idealizadora e Curadora)