segunda-feira, 21 de março de 2011

O que rolou: Milton Hatoum 14 de março de 2011

Clássicos da Contemporaneidade: uma leitura de Dois Irmãos

Milton Hatoum


Galeano Amorim, Milton Hatoum e Suzana Vargas



Ivo Barbieri prestigiando Milton Hatoum

Suzana Vargas e Maria Hena Lemgruber


Galeano Amorim e Suzana Vargas

terça-feira, 15 de março de 2011

Milton Hatoum: Clássicos da Contemporaneidade: uma leitura de Dois Irmãos - 14 de março

Milton Hatoum:
Escritor, tradutor e professor brasileiro. Lecionou literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas (1984-1999). Professor visitante da Universidade da Califórnia em 1196. Autor de Relato de um certo Oriente (Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 1989); Dois Irmãos (Prêmio Jabuti de 2001 e eleito melhor romance brasileiro entre 1990-2005); Cinzas do Norte (Vencedor de 5 prêmios); Órfãos do Eldorado; A cidade ilhada, entre outros.






Dois Irmãos
(fragmento)
Milton Hatoum

Capítulo 7

Na primeira semana de janeiro de 1964 Antenor Laval passou em casa para conversar com Omar. O professor de francês estava afobado, me perguntou se eu havia lido os livros que me emprestara e me lembrou, com uma voz abafada: as aulas no liceu começam logo depois do Carnaval. Falava como um autômato, sem a calma e as pausas do professor em sala de aula, sem o humor que nos mantinha acesos quando ele traduzia e comentava um poema. Minha mãe se assustou ao vê-lo tão abatido, um morto-vivo, a expressão aflitiva de um homem encurralado. Recusou café e guaraná, fumou vários cigarros enquanto tentava convencer Omar a participar de uma leitura de poesia, mas o Caçula primeiro fez uma careta de desgosto, depois brincou: se fosse no Shangri-Lá, eu ainda topava. Para Laval não era dia de chacotas: fechou a cara, calou, pigarreou, mas logo tornou a pedir, a implorar que Omar fosse com ele até o porão onde morava. Laval ainda teve que esperar o amigo tomar um banho para tirar a ressaca. Os dois saíram apressados e Omar só voltou na madrugada do dia seguinte, quando Zana estranhou a sobriedade do filho, alguma coisa que ele escondia ou o inquietava. Bombardeou-o com perguntas, mas ele desconversou. Antes de almoçar pediu dinheiro à irmã. Era bem mais do que costumava pedir, um dinheirão que Rânia se recusou a dar: “De jeito nenhum, mano, não há farra que custe essa fortuna”. Ele ainda insistiu, sem o cinismo habitual, sem os gestos de sedução que a desmanchavam. Insistiu com o rosto tenso, a voz grave, o olhar sincero. Zana, desconfiada, interpelou a filha: que desse uma parte do dinheiro, ou um pouquinho, Omar talvez quisesse pagar uma dívida. “Vocês dois não param de pedir dinheiro. Por que não passam uma semana atrás daquele balcão? Ou um dia inteiro, um só, naquele forno, agüentando o desaforo dos bêbados, a chatice dos fregueses e ainda por cima a ladainha do papai.”
Rânia não cedeu. Andava preocupada com o péssimo movimento de janeiro; o comércio estava quase parado, e a greve dos portuários afastava a clientela dos arredores do porto da Escadaria. Ela encheu uma caixa com amostras de novidades de São Paulo e pediu que eu fosse atrás dos fregueses mais assíduos. “Corre atrás desses fujões, se alguém quiser comprar eu mesma levo a mercadoria.” A lista era imensa, em cada rua eu entrava em oito ou dez casas para oferecer as maravilhas de Rânia. Conheci todo tipo de freguês: os indecisos, os pedantes, os exigentes, os perdulários, os agressivos, os medrosos, os intratáveis. Alguns me convidavam para merendar, contavam histórias intermináveis e se despediam como se eu fosse a visita. Lembrei-me das palavras de Halim: “O comércio é antes de tudo uma troca de palavras”. Muitos economizavam para gastar no Carnaval, mas alguém sempre comprava, e eu arrancava de Rânia um sorriso e uns trocados a título de comissão. Ela ficava eufórica, transpirava, os olhos graúdos reviravam de tanto prazer.O comércio a empolgava, ela se transfigurava ao receber os pedidos, mordia os lábios, me abraçava, e eu tremia como nas noites festivas do aniversário de Zana, que não existiam mais. Passei os meses de janeiro e fevereiro nesse vaivém por ruas, becos e alamedas. Quando anoitecia, Rânia fechava a loja e continuava o meu trabalho, enquanto eu ia atrás de Halim. Zana não o queria fora de casa durante a noite. “Ele não pode andar sozinho por aí, é perigoso”, ela dizia. Eu o encontrava numa roda de compadres no Canto do Quintela, ou na casa de um amigo já velho e doente. Relutava em voltar para casa, soltava uns palavrões em árabe, mas depois murmurava: “Está bem, querido, vamos, vamos... é o jeito, não é?”.
Na noite em que vimos Rânia carregando uma caixa e vendendo de porta em porta, ele disse com raiva: “Coitada da minha filha, está se matando para sustentar aquele parasita”. Ele não suportava mais olhar para o Omar. Até a voz do filho o irritava, dizia que lhe dava dor de barriga, que o coração queimava, tudo queimava por dentro dele. Soube que ele tapava os ouvidos com uma bolinha de sumaúma e cera só para não escutar a voz do Caçula. Quando eu ia atrás de Halim, passava pela pensão do Laval, mas não o via no subsolo. Estava totalmente escuro e a rua deserta dava um pouco de medo. Lembrava-me das poucas vezes que havia participado das leituras no porão. Pilhas de papel cercavam a rede onde ele dormia. Do teto pendiam esculturas, móbiles e objetos de papel. Talvez não tivesse jogado fora uma só folha. Devia guardar tudo: bilhetes, poemas e inúmeras anotações de aula rabiscadas em folhas de papel enroladas, dobradas, ou soltas, espalhadas no chão sujo. Nos cantos escuros amontoavam-se garrafões vazios de vinho, e no piso cimentado restos de comida ressequida se misturavam a asas de barata. “Este caos é mais infecto que um pesadelo, mas é o meu alimento”, dizia Laval aos alunos. Saíamos do porão carregando livros e apostilas velhas que ele nos presenteava. Ele permanecia lá dentro, fumando, bebendo e traduzindo poemas franceses durante a noite.
Estranhei que Laval não tivesse me convidado para participar da leitura de poesia. Depois, em março, ele faltou às primeiras aulas e só apareceu na terceira semana do mês. Entrou na sala com uma expressão mais abatida do que quando o vira em casa, o paletó branco cheio de nódoas, os dedos da mão esquerda e os dentes amarelados de tanto fumar. “Desculpem-me, estou muito indisposto”, disse em francês. “Aliás, muita gente está indisposta”, murmurou, agora em português. Mal se equilibrava de pé. A mão direita, trêmula, segurava um pedaço de giz, a outra, um cigarro. Esperávamos a “preleção” de costume, uns cinqüenta minutos que dedicava ao mundo que envolvia o poeta. Tinha sido sempre assim: primeiro o cerco histórico, ele dizia, depois uma conversa, por fim a obra. Era o momento em que ele falava em francês, e nos provocava, nos estimulava, fazia perguntas, queria que falássemos uma frase, que ninguém ficasse calado, nem os mais tímidos, nada de passividade, isso nunca. Queria discussões, opiniões diferentes, opostas, ele seguia todas as vozes, e no fim falava ele, argumentava animado, lembrando-se de tudo, de cada absurdo ou intuição ou dúvida. Mas naquela manhã ele não fez nada disso, não conseguia falar, estava engasgado, que droga, parecia sufocado. Estávamos boquiabertos, nem os mais ousados e rebeldes conseguiam provocá-lo, fazendo uma careta medonha por causa do bafo dele. “Vamos ver... vamos... ler alguma coisa... traduzir...” A mão trêmula começou a escrever um poema no quadro negro, o giz desenhava rabiscos que lembravam arabescos, só foi possível ler o último verso, que eu copiei: “Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?”. O resto era ilegível, ele se esquecera do título, e por um momento nos lançou um olhar estranho. Depois largou o giz e saiu sem dizer palavra. O professor de francês não voltou mais ao liceu, até que numa manhã de abril nós presenciamos sua prisão.
Ele acabara de sair do Café Mocambo, atravessava lentamente a praça das Acácias na direção do Galinheiro dos Vândalos. Carregava a pasta surrada em que guardava livros e papéis, a mesma pasta, os mesmos livros; os papéis é que podiam ser diferentes, porque continham as garatujas dele. Laval escrevia um poema e o distribuía aos estudantes. Ele mesmo não guardava o que escrevia. Dizia: “Um verso de um grande simbolista ou romântico vale mais do que uma tonelada de retórica – dessa minha inútil e miserável retórica”, acentuava.
Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como se fosse um cão vadio à mercê  da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó branco explodiu de vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas procurando um apoio, o rosto inchado voltado para o sol, o corpo girando sem rumo, cambaleando, tropeçando nos degraus da escada até tombar na beira do lago da praça. Os pássaros, os jaburus e as seriemas fugiram. A vaia e os protestos de estudantes e professores do liceu não intimidaram os policiais. Laval foi arrastado para um veículo do Exército, e logo depois as portas do Café Mocambo foram fechadas. Muitas portas foram fechadas quando dois dias depois soubemos que Antenor Laval estava morto. Tudo isso em abril, nos primeiros dias de abril.
Na manhã da caçada ao mestre eu apanhei a pasta surrada, perdida na beira do lago. Dentro da pasta, os livros e as folhas com poemas, cheias de manchas.
As lembranças de Laval: seus ensinamentos, sua caligrafia esmerada, de letras quase desenhadas. As palavras pensadas e repensadas. Ele não queria ser chamado de poeta, não gostava disso. Detestava pompa, ria dos políticos da província, espicaçava-os durante os intervalos, mas recusava-se a falar sobre o assunto no meio de uma aula. Dizia: “Política é conversa de recreio. Aqui na sala, o tema é muito mais elevado. Voltemos à nossa outra noite...” .
Choveu muito, um toró dos diabos, no dia de sua morte. Mesmo assim, alunos e ex-alunos de Laval se reuniram no coreto, acenderam tochas, e todos tínhamos pelo menos um poema manuscrito do mestre. O coreto estava cheio, iluminado por um círculo de fogo. Alguém sugeriu um minuto de silêncio em homenagem ao mestre imolado. Depois, um ex-aluno do liceu começou a ler em voz alta um poema de Laval. Omar foi o último a recitar. Estava emocionado e triste, o Caçula. A chuva acentuava a tristeza, mas acendia a revolta. No chão do coreto, manchas de sangue. Omar escreveu com tinta vermelha um verso de Laval, e por muito tempo as palavras permaneceram ali, legíveis e firmes, oferecidas à memória de um, talvez de muitos.
Por uma vez, uma só, não hostilizei o Caçula, não pude odiá-lo naquela tarde chuvosa, nossos rostos iluminados por tochas, nossos ouvidos atentos às palavras de um morto, nosso olhar na fachada do liceu, na tarja preta que descia do beiral à soleira da porta. Um liceu enlutado, um mestre assassinado: assim começou aquele abril para mim, para muitos de nós.
Não pude odiar o Caçula. Pensei: se toda a nossa vida se resumisse àquela tarde, então estaríamos quites. Mas não era, não foi assim. Foi só aquela tarde. E ele voltou para casa tão alterado que não se apercebeu da presença do outro.

A cidade estava meio deserta, porque era um tempo de medo em dia de aguaceiro. A casa também, quase vazia. Rânia lá na loja, Halim perambulando pela cidade, Zana por ali, na vizinhança, talvez na casa de Talib, em visita culinária. Domingas, guardiã da casa, engomova a roupa no quartinho dos fundos. Eu chegara mais cedo da praça das Acácias. Pensava em Laval, nas conversas noturnas em sua caverna, como ele chamava o porão onde morava sozinho. Pouca coisa sabíamos dele: ao meio-dia e às seis a dona da casa deixava um prato feito na entrada da caverna. Fazia isso todos os dias, mesmo aos domingos, quando eu passava na calçada da pensão e enxergava o prato de comida na soleira da porta, onde fervilhavam formigas-de-fogo e a gataria do Igarapé de Manaus. Eu via a silhueta de Laval através do óculo redondo do porão. A luz solar pouco aclarava a caverna, e uma lâmpada que pendia do teto iluminava a cabeça do mestre. Ele movia nervosamente as mãos para fumar, escrever ou virar a página de um livro. Raramente comia à noite: começava a beber depois do almoço, entrava na sala do liceu ainda sóbrio, mas animado. Os alunos do período noturno sentiam à distância o bafo azedo do sangue-de-boi. Expelia pelos poros esse vinagre insuportável. Suava. No entanto, não perdia a compostura nem o humor. Quando faltava luz, acendia um lampião e muitas velas. Nunca deixava de ler um poema e comentá-lo com entusiasmo. Compenetrava-se, circunspecto, assim de repente, no meio de uma lição. Podia ser o silêncio de um intervalo, uma reflexão, pausa que a memória pede e a voz cumpre. Ou seria o efeito do vinho, a caída no abismo? Talvez isto: alguma coisa inexplicável. Porque de sua vida ninguém tinha notícias claras: um caracolzinho entre pedregulhos. Só um zunzum corria nos corredores do liceu, dois dedos de mexerico da vida alheia, dele, Laval. Um: que fora militante vermelho, dos mais afoitos, chefe dos chefes, com passagem por Moscou. Ele não negava, tampouco aprovava. Calava quando a curiosidade se alastrava em alaridos. O outro rumor, bem mais triste. Diz que havia muito tempo o jovem advogado Laval vivia com uma moça do interior. Líder e orador nato, ele fora convocado para uma reunião secreta, no Rio. Levou a amante e voltou a Manaus sozinho. Falou-se de traição e abandono. Versões desiguais, palavras desencontradas e afins... Conjeturas. O que se sabe é que, desde então, Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da caverna, quieto e emudecido, o rosto cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação. Não era greve de fome nem inapetência. Talvez desespero. Seus poemas, cheios de palavras raras, insinuavam noites aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos alunos, pensando que ninguém os leria, pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um pessimista, um desencantado, e tentava compensar esse desencanto por meio da aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o rótulo de poeta, mas não se incomodava quando o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei qual dos dois atributos o definia melhor. Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. E também um atormentado que escrevia, sabendo que não publicaria nada. Seus poemas repousam por aí, em gavetas esquecidas ou na memória de ex-alunos.
A pasta de couro surrada já estava seca, e eu aquecia os papéis de Laval no vapor do ferro com que Domingas passava roupa. Os papéis estavam enrugados, manchados. Só algumas palavras podiam ser lidas. Os poemas, que já eram breves, tornaram-se brevíssimos: palavras quase soltas, como olhar para uma árvore e enxergar só as frutas. Enxerguei as frutas, que logo caíram, sumidas. E, ao olhar para a sala, divisei um vulto alto e esguio, e só pude pensar no poeta, no espectro do poeta Antenor Laval.
            Era Yaqub.

Rodas de Leitura: um mergulho nos clássicos

Um dos grandes desafios no ensino da literatura é e sempre será a apresentação dos textos ditos clássicos às novas gerações ou a neo-leitores. Dizemos que um texto é clássico quando ele já faz parte de um cânon cuja consagração pela crítica demora décadas, às vezes séculos para acontecer.

Afinal, o que é um clássico? Não confundir, óbvio, com antigo pois o novo pode já nascer clássico. E um bom texto será sempre novo bastando ao leitor ou professor descobrir sua contemporaneidade.
Essa discussão tão antiga quanto moderna permeia o trimestre das Rodas de Leitura que agora apresentamos. E ela será feita na ótima companhia de títulos imperdíveis, brasileiros e estrangeiros, contemporâneos ou não.

Assim, atravessaremos três meses em encontros que reúnem por exemplo, o contemporâneo Milton Hatoum ao vivo para conversar conosco sobre Dois Irmãos, livro que parece já ter nascido como um clássico da literatura brasileira recente. Em abril leremos dois dos maiores autores da literatura portuguesa, Camões e Fernando Pessoa, em um Concerto de Poesia, mediadas pela mais importante intérprete de suas obras, a profa Drª Cleonice Berardinelli.

Por fim, em maio, teremos a presença do russo Fiódor Dostoievski através de um dos mais populares romances da literatura russa do século XIX, Crime e Castigo a ser decifrado por ninguém menos que Paulo Bezerra, seu premiado tradutor.

Com este cardápio bastante selecionado de temas e autores queremos reafirmar nossa confiança na leitura e na literatura como fontes de conhecimento e de prazer. Neste sentido as Rodas, em encontros regidos pela simplicidade e pela informalidade contribuem para a formação de novos leitores e para a difusão do livro no país.

(Suzana Vargas - Curadora)