terça-feira, 9 de agosto de 2011

Reinaldo Moraes - 08 de agosto de 2011


Roberta Rangel e Suzana Vargas









Reinaldo Moraes - Leitura de Pornopopéia: do gozo ao risco, do risco ao riso - 08 de agosto de 2011


Pornopopéia (fragmento)

Reinaldo Moraes



PARTE I

“Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopeia, não é arte. É – repita comigo – vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cine-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor.
            Ok, chega de papo. É só dirigir a porra da tua mente pra nova linha de embutidos de frango da Granja Itaquerambu. Podia ser qualquer outro tema, os cristais de Maurício de Nassau, a cavalgada das Valquírias, a vingança dos baobás contra o Pequeno Príncipe. Que diferença faz? Pensa que são os embutidos de frango do Nassau, a cavalgada das mortadelas, a vingança dos salsichões contra o Pequeno Salame. Pensa no target do vídeo: seres humanos a quem coube o karma nesta encarnação de vender no atacado os produtos da Itaquerambu. Pensa no evento em que o teu vídeo vai passar – vários eventos, aliás, todos no mesmo dia em todas as filiais do Brasil. Os seres humanos vendedores de embutidos verão teu vídeo e serão apresentados ao salsichão, ao salame e até à mortadela de frango, heresias saudáveis em matéria de junk food que a Itaquerambu vai lançar no mercado. Mesmo a tradicional salsicha e a insuperável linquiça de frango vão ser relançadas com outra formulação, segundo eles dizem. Quer dizer, em vez do jornal reciclado de praxe, os putos vão adicionar algum tipo de pasta de lixo orgânico pasteurizado na mistura, imagino, mais uma contribuição da Itaquerambu para um planeta sustentável.
            Porra, mas eu sou cineasta, caralho. Artista. Não nasci pra rodar vídeo institucional. E de embutidos de frango, inda por cima, caceta!
            Calma, calma. Pensa que o teu vídeo será visto “de Passo Fundo a Quixeramobim, do Rio de Janeiro a Corumbá”, como disse o Zuba, ao sentir minha reação pouco eufórica diante do tema. “ E capricha na linguagem brasileira universal, tá?”, foi o que ele me pediu, como se linguagem brasileira universal fosse uma das opções do Final Draft ou do Magic Screen Writer. Você clica em LBU e seu texto será entendido nos pampas, serrados, praias, selvas e caatingas do país, sem contar os aglomerados urbanos e seus múltiplos guetos. Teu único filme de cinema até agora, por exemplo, nunca passou em tantos lugares ao mesmo tempo. Na caatinga, por exemplo, nunca foi visto. Não que se saiba.
            Volto a perguntar: qual a diferença entre arte e embutidos de frango? Ou melhor: por que embutidos de frango não podem se transformar em arte?
            Mas não precisa pensar nisso agora, nem merda nenhuma que não seja frango embutido. Faz logo essa porra, porra. É bico: oito minutos de duração, um curta-metragem. Não vai matar o artista que há em você, amice. Ou havia. Ou nunca houve nem haverá. Foda-se.
            É isso aí: vídeo institucional, embutidos de frango, Granja Itaquerambu. Beleza.
            O que fode é o prazo. Sempre a porra do prazo. Tá ligado que esse roteiro tem que estar escrito, aprovado, rodado, entregue em mídia DVCAM e exibido pros vendedores até 15 dias antes do lançamento da campanha? Ou seja, daqui a nove dias. Você devia ter chamado um bosta dum roteirista qualquer pra te ajudar, desses que filam cigarro e cerveja de mesa em mesa na Merça e não perdem chance de puxar uma lousa e dar aula sobre Hal Hartley e a narrativa cinematográfica interior aos substratos descontínuos da consciência dos personagens pra alguma gostosinha basbaque de peitinhos soltos dentro de uma camiseta de pano fino. Conheço vários roteiristas desse naipe. Dúzias deles, na verdade. Tudo uma corja de bebum cafungueiro desempregado du caraio. Por uma peteca de pó e duas Original você contrata na hora um deles. Se calhar, o infeliz ainda leva teu carro no mecânico pra trocar a frição e te faz o obséquio de encarar uma fila de banco pra pagar tuas contas atrasadas.
            Bullshit. Não preciso, nunca precisei de roteirista nenhum. Merda por merda, deixa que eu mesmo chuto. Só que dessa vez travei geral. E o cara da Itaquerambu tá no pé do Zuba, que tá no meu pé, que tô em pé de guerra com os embutidos de frango. Ridículo, isso. Fala sério: nem uma reles ideiazinha pro vídeo pintou ainda na tua cabeça, meu filho. Nem a porra duma ideia de merda.
            Pois é, nem a ideia.
            Tá foda.
            Embutidos de frango.
            Foda.
            As peças da campanha publicitária que eles vão lançar já estão prontas. Tive a honra de assistir às pérolas numa sessão privê lá na agência. Comovente. “Mais saúde, menos colesterol, mais sabor. Mais do melhor para toda a sua família!”, proclama a locução em off do spot de 15 segundos pra TV e rádio que vai ao ar no horário nobre. Vou ter que usar alguns desses slogans no institucional. O débil mental do publicitário que bolou isso deve tá rodando agora num Land Rover zerinho, blindado, ao lado duma patricinha escultural no máximo 25 anos mais velha que o carro, os dois lindos, esculpidos na academia, com os intestinos repletos de fibras vegetais e substâncias antioxidantes e ácidos graxos insaturados, surfando confiantes na crista do futuro, sugando o melhor do presente, cagando e andado pro passado.
            Mais do melhor pra sua família.
            Vão se fuder.
            Meu negócio não é publicidade. Antes fosse. Na publicidade é que rola a bufunfa. Já rolou mais. Ainda rola alguma. Mas você tem que ser um gênio da raça e bolar slogans  nada menos que sublimes, como esse Mais saúde. Menos colesterol, mais sabor...
            (Porra, tu é uma anta mesmo. Em vez de cavar um lugarzinho numa agência quando teve a chance, foi se meter com cinema, e marginal inda por cima. Acabou no pornô e nessa bosta mole de vídeo institucional, o gonococus aureus da porra do cavalo land rover do publicitário. Agora foda-se, mermão. Embutidos de frango. Se concentra aí e manda vê, falô?)
            Mandaram abrir e fechar o vídeo com a frase cunhada pelo diretor-presidente em pessoa, mote de toda a campanha: “Itaquerambu: os embutidos do século 21!” O cara do marketing endógeno e a diretoria de relações institucionais repisaram mil vezes que a frase “sintetiza o conceito da nossa nova linha de produtos”. Conceito? Conceito é o rabo deles. “Itaquerambu: os embutidos do século 21!” Pode uma platitude dessas sintetizar algum conceito? Vão tomar no ânus conceitual deles.
            Se bem que, pensando bem, é um puta matar budista essa frase. Capaz de induzir ao esvaziamento da mente, à levitação do espírito, ao cancelamento do ego, ao franqueamento de todos os portais da percepção, à náusea, ao vômito, ao aniquilamento do ser, à morte em vida severina.
            Pronto. Já desabafou?
            Legal. Agora, centra o foco nos embutidos de frango. Lingüiça e salsicha de frango, salame de frango, salsichão de frango, mortadela de frango. Itaquerambu, os embutidos do século 21. Vídeo institucional. Mais do melhor pra toda a sua família. Uma ideia. Roteiro. Cachê. Vida prática.
            Taqueopariu.
            Desembutido de mim, embotado estou. Virei mal o século e pior ainda o milênio. Tô ficando grisalho. Pançudo. Mais bêbado e zoado que nunca. Cético, cínico, hipócrita a não poder mais.
            Mas, e a Samayana ontem? E a Sossô? A Sossô...Puta merda. Só de pensar na Sossô já me/
            Embutidos de frango. Institucional. Zuba. Itaquerambu. Deadline.
            Não dá.
            Dá, tem que dar.
            Não dá!
            Dá!
            Tem que dar. Já estourei o segundo prazo negociado na porrada com o Zuba, que por sua vez o renegociou a tiros com o cliente. Caralho, por que tantos clientes e embutidos de frango nesse mundo de Deus, santo Deus? Quando furei o primeiro prazo, o Zuba quis me matar. Se eu furar de novo, ele vai me matar. O Zuba prefere perder uma bola do saco a furar o deadline acertado com o cliente, esse deus do Olimpo – da Vila Olímpia, no caso, vigésimo andar de uma torre de metal brilhante e vidro espelhado numa travessa da Berrini, de onde avistei pela janela selada o quadrilátero de grama da Hípica Paulista, ao entrar na sala de reunião. Era a Hípica lá embaixo, mas não tinha nenhum cavalo à vista.
            “Cadê os cavalos?”, eu disse em voz alta pro diretor de marketing endógeno ouvir. Ele tinha acabado de sentar à mesa.
            “Que cavalos?”, o cara respondeu.
“Lá embaixo, na Hípica”, apontei. 
O cara expirou sua má vontade pelo nariz e se levantou pra vir até a janela dar uma olhada, enquanto os demais se acomodavam em torno da mesa de reunião. Olhou pra baixo, olhou pra mim.
“É, não tem cavalo. Qual o problema?”
Eu não sabia o que responder. Pra mim era óbvio que havia um problema ali. Uma hípica sem cavalos? Como era possível um diretor de marketing endógeno não ver problema nisso? Só porque se tratava de um problema exógeno?
Foi aí que uma garota de calça bege de montaria, paletozinho preto, rabo de cavalo loiro esguichando do quepe preto de aba curta, com um baita cavalo entre as pernas, cruzou a galope o gramado, na diagonal. De longe era bonita. De perto devia ser rica. O cavalo tinha o mesmo rabo empinado que ela.
“Olha lá! Um cavalo!”, berrei.
Achando que pegaria bem estabelecer algum tipo de cumplicidade machista com o diretor de marketing endógeno, agreguei no ouvido dele:
“Fogosa, né? A égua digo.”
Não sei que réplica teria dado a esse comentário se o Zuba não tivesse me puxado pelo braço e me jogado numa cadeira, brincando de levar o aluno irrequieto ao seu lugar.
“Vem cá, Zequinha, senta aqui, senta? A reunião já começou, garoto”, ele disse, com um sorriso e um olhar que escancaravam o subtexto: “E vê se cala essa boca, animal!
            O Zuba. Por conta de muitos prazos estourados e do meu “comportamento instável diante dos clientes”, o Zuba tinha jurado nunca mais me chamar pra porra de job nenhum “na puta dessa vida”. Não sei bem por que, o idiota  não cumpriu a promessa e, meses depois, me ligou perguntando se eu queria pegar um trabalho. Eu quero é grana, mas às vezes sou obrigado a trabalhar pra conseguir o desgraçado do metal vilão. Ele começou explicando que o job tinha o meu “perfil criativo”. Como o meu perfil criativo anda sem um puto no bolso, topei a bagaça no escuro. Antes de me brifar, e de concordar com pesada relutância em me adiantar dois paus do bolso dele, o Zuba frisou umas setecentas e trinta e oito vezes:
            “Fica esperto dessa vez, Zeca. Nada de pirar nas reuniões, tá? E se liga no deadline. É tua última chance comigo.”
            “Tô ligado na linha do morto”, eu disse. “Fica frio.”
            Ouvi uma bufada do outro lado. Minhas subgags já não fazem mais sucesso com o Zuba como antigamente. Minha última chance. Já tive outras últimas chances com o Zuba. E também com a Lia, por falar nisso.
            A Lia. Não dou as caras desde ontem. Deve tá puta comigo, claro. Mas não é nenhum fim do mundo. Sempre parece que é, mas acaba não sendo o fim do mundo. Já com o Zuba, sei não. Acho que o cara perdeu de vez a paciência comigo. Ele não é minha mulher, não tem filho comigo, não se deixa impressionar pelos meus olhos azuis, não conhece meus predicados viris. É só o filhadaputa do intermediário que me chama pra fabricar vídeos institucionais pros clientes dele, acenando com orçamentos ridículos  que me deixam margens de lucro próximas do zero absoluto. Cuzão, esse Zuba.”

REINALDO MORAES – Escritor brasileiro, nascido em São Paulo em 1950. Abandonou a carreira de economista para se tornar autor com a publicação dos romances Tanto Faz, em 1981, e Abacaxi em 1985.  Além disso, escreveu diversos roteiros para TV. Publicou também Órbitas dos caracóis, um romance para jovens, em 2003 e Umidade, uma antologia de contos, em 2005. Seu último lançamento foi Pornopopéia, em 2009, que é considerado um dos grandes livros da safra mais recente da ficção brasileira. Com um estilo ao mesmo tempo refinado e galhofeiro, o autor nos conta as histórias de personagens “cujo hábitat natural é uma imensa e úmida colônia de bactérias morais chamada classe média.”


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Próxima Roda:

Na próxima Roda, o autor Reinaldo Moraes  lerá trechos de seu inventivo e transgressor Pornopopéia numa divertida e erótica abordagem do caos contemporâneo.