quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Próxima Roda:

Em outubro a poesia contemporânea ganha lugar com as presenças inestimáveis de Eucanaã Ferraz e Antonio Cicero.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dante Alighieri por Marco Lucchesi - A Divina Comédia: do Universal ao particular - 19 de setembro de 2011

A Divina Comédia (fragmento)

Dante Alighieri


Tradução de Cristiano Martins

PARAÍSO – CANTO XXXIII 
Visão final de Deus

            São Bernardo roga a intercessão de Maria para habilitar o poeta à contemplação da essência divina. A seguir, convida o seu companheiro a erguer os olhos ao raio resplendente, em que pôde divisar a forma universal, na sua substância, no seu acidente, e no respectivo composto. E viu o ponto luminoso desdobrar-se em três anéis, como numa representação do mistério da Trindade, sendo que num deles se instilava a forma de um rosto, numa representação do mistério da Encarnação.

1          “Ó Virgem mãe, ó filha de teu Filho,
            mais alta e humilde que  qualquer criatura,
            dos eternos desígnios termo e brilho!

4          Em ti se sublimou a tanta altura
            a humana condição, que o seu Fautor
            em tornar-se acedeu sua feitura.

7          No teu seio fulgiu o doce amor
            a cuja luz intensa e resplendente
            germinou deste modo a eterna flor.

10        Aqui és para nós a transparente
            face da caridade; e da esperança,
            entre os mortais, és fonte permanente.

13        Tamanha é nestes céus tua pujança,
            que quem o bem, sem ti, busca, hesitante,
            como que a voar sem asas se abalança.

16        Não só a quem te invoca, suplicante,
            brilha o fulgor de tua caridade,
            senão que às vezes vem do rogo adiante.

19        Em ti todo o perdão, toda a piedade,
            toda a doçura, no padrão superno
            confluem da mais ínclita bondade.

22        Este, que dos desvãos finais do inferno
            chega, já tendo visto, uma por uma,
as três partes do reino sempiterno,

25        roga-te, qual na terra, lá, costuma,
            a graça de lhe abrires a visão
            ao resplendor da claridade suma.

28        E visto que não ardo mais, então,
            no meu desejo do que pelo seu,
            eu te dirijo agora esta oração,

31        porque de seu estado o espesso véu
            tu lhe removas com tua bondade,
            e a vera luz possa enxergar do céu.

34        E como tudo podes, na verdade,
            peço-te, ó Mãe, que após esta visão
            tu lhe conserves da alma a integridade,

37        por dominar a humana inquietação:
            Olha Beatriz, olha os beatificados,
a orar comigo, unindo mão a mão!”

40        Os olhos do bom Deus tanto admirados,
            atentos em Bernardo, revelaram
            como os apelos seus lhe eram prezados;

43        depois, no eterno lume se fixaram,
            como outros olhos tão profundamente
            jamais em sua essência penetraram.

46        Eu, que da meta de minha ânsia ardente
            me aproximava, então, como devia,
            de todo afã me despojei à frente.

49        Bernardo me acenava, e me sorria,
            por os olhos erguer; mas eu já estava,
            por mim, fazendo o que ele me pedia.

52        E minha vista, cristalina, entrava
            pela própria raiz do resplendor
            que em si, tão só, e só por si, brilhava.


55        Tornou-se, então, minha visão maior
            que a voz humana, e foi insuficiente
            o senso da memória a tal fulgor.

58        A jeito de quem sonha, e apenas sente,
            após o sonho, uns restos da impressão,
            enquanto o mais se lhe desfaz na mente,

61        eu me encontrava, ao fim desta visão,
            que apesar de desfeita ainda instila
            sua doçura no meu coração.

64        Assim ao sol a neve se destila;
            e assim ao vento as folhas fugidias
            se perdiam do augúrio da Sibila.

67        Ó suma luz, que ali me transcendias
            o conceito mortal, dá-me somente
            um sinal do esplendor em que fulgias,

70        e torna a minha voz ora potente
            por que um vislumbre ao menos de tal glória
            possa eu deixar à porvindoura gente!

73        Se algo de ti me vier inda à memória,
            e no meu canto acaso for lembrado,
            mais na terra soará tua vitória!

76        Feriu-me de tal modo o lume iriado
            que se desviasse os olhos acredito
            jamais de novo o houvera divisado.

79        E, pois, fitei-o, agora mais convicto
            de suportá-lo, e minha vista, assim,
            ao bem se prolongou, alto e infinito.

82        Ó graça eterna, que me fez, por fim,
            o lume desvendar, sublime e terso,
            cujo esplendor repercutia em mim!

85        E no seu fulcro vi brilhar converso,
            em perfeita e veraz composição,
            tudo o que pelo mundo está disperso.

88        A substância e o acidente, e sua união,
            subitamente ali pude abranger,
            na sua própria e primordial razão.

91        A forma universal, a essência e o ser,
eu divisei no módulo subido,
que a mencioná-lo sinto igual prazer.



94        Mas trouxe-me um instante mor olvido
que vinte e cinco séculos à empresa
de Argos, que fez Netuno surpreendido.

97        Concentrava-se ali, atenta e presa
            a tal contemplação, a minha mente,
            no objeto da visão somente acesa.

100      Ó luz que nos atrais tão fortemente,
            que abandonar-te por um outro efeito
            jamais a quem te vê não se consente!

103      Pois o bem, que o querer nos traz sujeito,
            em ti se acolhe e só de ti promana;
            e só em ti se encontra o que é perfeito!

106      Por narrar o que vi é a voz humana
            mais que a de uma criança insuficiente,
            que ao seio da nutriz inda se afana.

109      Não que vários aspectos, simplesmente,
            na luz se demonstrassem, que eu fitava,
            e que era em si a mesma e permanente,

112      mas porque meu olhar se incrementava
            tanto, fitando-a, que uma só essência,
            à minha mutação, se transmudava.

115      Na profunda e dilúcida aparência
            da luz vi três anéis, tendo três cores,
            mas uma só e igual circunferência.

118      Um refletia no outro os seus fulgores,
            como dois Íris, e o terceiro, à frente,
            de ambos colhia a um tempo os esplendores.

121      Ah! Como é vã a voz, e incompetente,
            por demonstrá-lo! E creio ser melhor
            calar do que dizer tão pobremente!

124      Ó luz que vives de teu próprio ardor,
            que em ti te sentes, e és por ti sentida,
            que em ti, e só por ti, és graça e amor!

127      A auréola, da primeira refletida,
            tal como à minha vista ressurgia,
            quando sobre ela um pouco foi detida,

130      um rosto humano ali me parecia
            ter instilado em sua irradiação;
            e, pois, todo para ela me volvia.



133      Como o geômetra, que intenta a medição
            do círculo, e porfia, e não atina
            co’ o princípio de sua indagação,

136      eu me sentia ante a visão divina:
            e buscava apreender como essa imagem
            na auréola se estampava, fidedigna.

139      Mas não bastava ao vôo minha plumagem;
            e súbito um relâmpago eclodia,
            que me aclarou, na lúcida voragem.

142      Aqui findou, sem força, a fantasia:
            mas já ao meu querer soltava as velas,
            qual a roda, co’ o moto em sincronia,

145      o Amor que move o sol, como as estrelas.

Fim
da
Divina Comédia

1. Ó Virgem mãe, ó filha de teu Filho: Aqui (e até ao verso 39) o poeta reproduz a oração dirigida a Maria por São Bernardo, como referido no último verso do Canto precedente.
6. Em tornar-se acedeu sua feitura: Deus, dada a suma perfeição em que se sublimou a natureza de Maria, escolheu-a para, através dela, tornar-se de Criador em sua própria criatura, no desígnio de promover a redenção do gênero humano.
7. No teu seio fulgiu o doce amor: O amor de Deus, através do qual a Encarnação do Verbo, repondo os homens na senda da salvação, fez florir ali aquela imensa rosa, que o poeta contemplava, e na qual se postavam as almas beatificadas (vejam-se o Canto XXX, versos 124 a 129, e o Canto XXXI, versos 1 a 3).
22. Este, que dos desvãos finais do inferno: Este, quer dizer, Dante, que desde o recôndito centro do Inferno chega agora ao Empíreo, depois de ter percorrido, uma a uma, as três partes do reino eterno (o Inferno, o Purgatório e o Paraíso)...
25. Roga-te, qual na terra, lá, costuma: O poeta, com efeito, se confessara devoto de Nossa Senhora, cujo nome invocava, na terra, dia e noite (veja-se o Canto XXIII, versos 88 a 90).
28. E visto que não ardo mais, então: Bernardo observa, gentilmente, que o seu próprio desejo de fruir da contemplação de Deus não excedia, ali, ao de seu companheiro, e por isto é que implorava à Virgem que propiciasse ao poeta essa visão.
31. Porque de seu estado o espesso véu: Posto que o poeta ali se encontrava ainda em vida, era mister que a inspiração divina lhe removesse as limitações (o espesso véu) de sua condição mortal, para poder alçar-se depurado, à contemplação de Deus.
            38. Olha Beatriz, olha os beatificados: Beatriz e as almas escalonadas pelas pétalas da imensa rosa pareciam juntar-se ali à prece de Bernardo, quedando-se de mãos postas, enquanto o Santo pronunciava estas palavras.
            40. Os olhos do bom Deus tanto admirados: Os olhos de Maria, que estavam postos em Bernardo pelo tempo que durou sua oração.
            55. Tornou-se,  então, minha visão maior: O poeta se escusa por não poder descrever, exatamente, como, naquele instante, via Deus, pois que tal visão excede ao poder da expressão humana, e nem a memória mortal, por sua vez, poderia conservá-la na sua miraculosa realidade.
            64. Assim ao sol a neve se destila: A visão divina, de que eu desfrutei, diluiu-se naturalmente, após manifestar-se, no meu pensamento, como a neve que se desfaz ao calor do sol, e como os oráculos da Sibila que, escritos nas leves folhas, eram logo dispersados pelo vento.
            71. Por que um vislumbre ao menos de tal glória: E já que lhe era impossível, com os seus próprios meios, narrar exatamente o que vira, o poeta implora à graça divina que lhe proporcione, ao escrever, a força por manifestar ao menos um vislumbre daquela luz celeste, para deixá-lo às gerações futuras como um humilde serviço à glória de Deus e da Igreja.
            94. Mas trouxe-me um instante mor olvido: O poeta significa que um só segundo transcorrido após a visão acarretava-lhe um esquecimento maior do que o que vinte e cinco séculos poderiam ter trazido à empresa dos Argonautas, cuja nau (Argos) singrou os mares para espanto de Netuno. Dois milênios e meio não bastaram para fazer olvidar aquele feito; um breve instante, entretanto, já lhe apagava da memória os traços da sublime visão.
            114. À minha mutação, se transmudava: À medida em que contemplava a luz divina, maior penetração adquiria o olhar do poeta. E, assim, como que se ia transmudando em sua vista aquela luz, que era, entretanto, em sua essência, imutável.
            116. Da luz vi três anéis, tendo três cores: Nessa aparente e apenas reflexa transmutação do foco luminoso (Deus), o poeta viu destacarem-se três anéis, coloridos e de igual circunferência, significando, obviamente, o mistério da unidade e da trindade divina.
            118. Um refletia no outro os seus fulgores: Os dois anéis, um refletindo no outro os seus fulgores, como um arco-íris que se desdobra, eram a representação, na Santa Trindade, do Pai e do Filho; e o terceiro, que recolhia dos outros a sua flama, o era do Espírito Santo.
            127. A auréola, da primeira refletida: A auréola referida no verso 118, que recebia o reflexo da primeira, quer dizer, o Filho (o Verbo divino), parecia configurar na sua irradiação uma face humana, como representação do Verbo unido à natureza mortal, Cristo, a Encarnação.
            133. Como o geômetra que intenta a medição: A medição aqui referida seria, segundo o consenso dos comentadores, a especulação sobre o problema da quadratura do círculo.
            139. Mas não bastava ao vôo minha plumagem: Minha força (minha plumagem) era insuficiente para tal vôo, isto é, para alcançar a razão porque se demonstrava no círculo luminoso a imagem humana. Mas um súbito relâmpago eclodiu ali, e deixou-me entrever, no seu lampejo, aquilo que eu procurava.
            142. Aqui findou, sem força, a fantasia: Neste ponto, extinguiu-se a minha fantasia; quer dizer, a minha visão terminou.
            143. Mas já ao meu querer soltava as velas: Extinta a minha visão, senti que a Providência (o Amor que move o sol, como as estrelas) já impelia os meus anelos e aspirações para outros rumos (as preocupações e tarefas da vida terrena, ou quotidiana, provavelmente).
            Observe-se que tanto o Cântico do Paraíso, como o do Inferno e o do Purgatório, têm por fecho a palavra estrelas. O poeta dedicava especial apreço à doutrina corrente em seu tempo de que o destino dos homens se influía pelas estrelas.

____________________________________________

DANTE ALIGUIERI – (1265 – 1321). Escritor, poeta e político italiano. É considerado o primeiro maior poeta da língua italiana e o mais importante pensador de sua época. Redigiu o poema, de viéis épico e teológico, La Divina Commedia (a Divina Comédia), que se tornou a base da língua italiana moderna no qual transparece o modo medieval de entender o mundo. Nasceu em Florença, onde viveu a primeira parte da sua vida até ser injustamente exilado.

MARCO LUCCHESI – Poeta, professor, ensaísta e tradutor. Formado em História pela UFF, Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ e Pós-Doutor em Filosofia da Renascença na Universidade de Colônia, na Alemanha. Autor, entre outros, dos livros O dom do crime, Meridiano celeste & bestiário de Sphera. É membro da Academia Brasileira de Letras.







quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Próxima Roda:

Nessa Roda faremos uma leitura do clássico de Dante Alighieri - A Divina Comédia, que será decifrada pelo poeta e exímio tradutor Marco Lucchesi.