quinta-feira, 30 de junho de 2011

Próxima Roda:

Na próxima Roda teremos a leitura iniciática de James Joyce através de seu Ulisses, considerado um dos livros sagrados do mundo moderno, segundo seu intérprete, o ensaísta Léo Schlafman.


terça-feira, 14 de junho de 2011

Sérgio Sant'Anna - 13 de junho de 2011













Sérgio Sant'Anna - O Conto como gênero na ficção brasileira de vanguarda - 13 de junho de 2011


O Vôo da Madrugada (fragmento)

Sérgio Sant’Anna


Conto Um erro de cálculo


Houve os momentos em que o homem de trinta e dois anos, Maurício, sujeito em princípio comum, advogado, com o travesti muito jovem dentro do carro, teve uma série de percepções súbitas e intensas. Por exemplo, que a atração fascinada por aqueles seios que acariciava – bastante discretos em comparação com os de outros travestis que já vira na rua com os seios expostos – tinha também outras origens além daquela que reconhecera mais ou menos claramente, de início, ao abrir para a “mocinha” a porta do carro: um desejo de clandestinidade, de novidade, de encontrar naqueles seios o que sua mulher, depois de dois filhos, não podia mais oferecer, nem que fizesse uma operação plástica, porque era também – e isso para ele – uma questão psicológica  envolvendo a maternidade, leite nos seios, numa relação que já seguira uma parte de seu curso de família feliz e convencional, quando então podia sentir-se mortalmente entediado.
Não era de admirar que tantos casais se separassem, muitas vezes apenas para recuperar, na vida, as emoções.
Mas, na consciência dele, saltou a imagem, que andava apagada, da irmã, Lúcia, menos de um ano mais velha do que ele (mais tarde, os pais não haviam tido como esconder que ele fora um erro de cálculo), de quando ainda viviam em quartos interligados, sem porta divisória, e de quando, brotando nela seios, ela passara a tirar a blusa de costas para ele, provocando-lhe uma excitação que só cedia quando ele se masturbava no banheiro.
Depois, antes que os pais se dessem conta de que deviam se mudar para um apartamento maior, com um quarto nitidamente separado para cada um, ela deixara que ele acariciasse ou mesmo chupasse os seus peitinhos, e até mais do que isso: pegara o pau dele e o colocara ali, na entrada da vagina dela. E tinha sido um milagre que ele, com seus quase doze anos, não a houvesse desvirginado antes que o interesse de ambos se voltasse para as garotas e os garotos de fora. E ele chegara a conversar com a irmã sobre a sua vontade de conhecer como era ter seios, e ela encostando seus mamilos de leve nos dele, dissera, séria, com um ar de gravidade, superioridade e mistério: “Sinta só, para você ver”.  E uma noite, quando estavam a sós em casa, ele pusera um vestido de Lúcia e depois, erguendo-o até a cintura, deixara que ela se ajoelhasse para chupar o seu pau. Fora tudo uma loucura, mas, ao crescerem mais um pouco, jamais comentaram aquelas coisas, como se nunca houvessem acontecido. Às vezes, porém, quando ocorria uma rápida troca de olhares, ele se perguntara se ela não estaria se lembrando daquilo, como ele.
E o fato de terem se tornado, quando adultos, irmãos um pouco cerimoniosos um com o outro talvez se devesse a sua anárquica liberdade do início da adolescência.
Para Letícia, sua mulher, ele confidenciou, na verdade buscando escandalizá-la um pouco e provocá-la eroticamente, algumas intimidades que tivera com a irmã, apesar de amenizá-las com a alegação de uma certa inocência na época, o que até era verdade, de certo modo, embora tivessem toda a consciência de estarem desfrutando de um prazer proibido. Contou também o caso do vestido, sem descer ao detalhe de que Lúcia chupara o seu pau, mas deixando subentendido que alguma coisa a mais acontecera sob aquele vestido. E propôs a Letícia, quando fez essa confidência, que cada um pusesse roupas do outro, para se divertirem. Ele chegou a colocar, além de um vestido, uma calcinha dela, mas Letícia se negou a vestir uma cueca, não queria parecer homem, só aceitando usar, dele, uma camisa de mangas compridas e uma calça folgada de linho, ficando bastante charmosa.
Ele se sentiu extremamente excitado quando, com ele deitado na cama, Letícia levantou o seu vestido, nele, Maurício, e, também baixando nele sua calcinha, chupou o seu pau, e ele acabou por gozar logo e ela mal teve tempo de afastar a boca, porque não era mulher que não sentisse nojo de engolir sêmen. Principalmente para ela, portanto, fora uma trepada frustrada, e ele jamais ousou repetir a proposta. E chegou a pensar se, por causa do lance do vestido, Letícia não se fizera indagações sobre a sua masculinidade.
Algum tempo depois do episódio, Letícia ficou grávida do primeiro filho – que agora tinha cinco anos – e, no casamento deles, como não é incomum, inclusive contando com a complacência dele, Maurício, a maternidade se sobrepôs a tudo, ao preço, porém, de uma perda considerável, se não quase total, da libido, sufocada no meio de talco, fraldas e amamentação, tudo reforçado pelo fato de que, gerada pela intenção  de não terem um filho único, uma filha veio a nascer dois anos após o primogênito.
Mas não havia ficado em duas vezes o uso, ou quase isso, de um vestido por parte de Maurício, só que a terceira vez fora tão soltaria e secreta que podia, perfeitamente, passar, até para ele próprio, como se não tivesse acontecido. E, mesmo ele se reconhecendo, uma vez ou outra, mas rara, em tal acontecimento, foi preciso um encontro como aquele, na Glória, para que se formasse um nexo mais consistente entre os três episódios.
Tinha sido no final de uma tarde de domingo, quando Letícia saíra com o filho – era apenas um, na época – para ir à casa dos pais, e Maurício, gripado, conseguira escapar da visita. E, tendo saído do banho, enrolado numa toalha, de repente, já no quarto se viu sexualmente excitado ao abrir a porta do armário dele e da mulher, como se o silêncio e sua solidão no aposento o introduzissem num território proibido, das coisas escondidas,  onde se reavivava o desejo perdido. E, cedendo a um impulso, Maurício atirou a toalha na cama e pegou um dos vestidos de tecido mais leve de Letícia. Apertou-o contra o corpo e, mirando-se, febril, no espelho, com o coração acelerado, teve uma ereção tão forte que tinha de ser apaziguada.
Maurício deitou-se na cama, com o vestido da mulher estendido sobre o seu corpo nu. O que não implicou que, ao se masturbar, ele construísse fantasias com Letícia ou alguma outra mulher real, embora, um pouco antes, diante do espelho, houvesse passado velocissimamente por seu pensamento o episódio com o vestido da irmã. Tratava-se, agora, de um desejo de outra ordem, e a mulher que atravessou a mente de Maurício era imaginária, concebida, apesar de fugidiamente, de sua vontade mais profunda, com um corpo delicado e esguio, pernas rijas, seios pequenos, feições bonitas e gentis. E, no meio de suas sensações, Maurício percebeu claramente que aquela mulher, imaginária no vestido, estava ali com ele mesmo, em seu corpo, quase como se fizesse parte dele. E Maurício teve de usar toda a sua força de vontade para interpor a toalha entre o seu pau e o vestido, antes de esvair-se numa ejaculação, para não manchar a roupa de Letícia.
Mas, voltando aos tempos mais antigos, não havia dúvidas de que, durante aquele início de adolescência, ao mesmo tempo em que fora muito precocemente masculino, ele tivera uma intimidade muito maior com o feminino do que seria de se esperar num garoto. E pode-se dizer que, sem que todo um discurso fosse assim articulado, tudo aquilo voltou na noite em que pôs para dentro do carro o jovem travesti – Branca, fora o nome que ele lhe dera – que, tão diferentemente dos outros, usava um vestido juvenil de cuidadosa simplicidade, parecendo uma mocinha, e Maurício queria crer, ou mesmo tinha certeza de que fora por isso que parara o carro. Pois, se já tivera relações extraconjugais, inclusive com garotas de programa, jamais se aproximara de um travesti.
Porém, quando Branca propôs que fossem a um hotel, Maurício recusou, pois a idéia de que o outro, despindo-se,  se transformasse num homem com um pau, parecia-lhe, mais do que embaraçosa, intolerável. E Maurício, verdadeiramente, não saberia o que fazer com o outro naquela situação. Por outro lado, já lhe tendo vindo à mente, com toda a força, a figura da irmã, por alguns momentos viu em Branca, com seu vestidinho, junto com a imagem de Lúcia, a dele próprio, Maurício. Ele, que já pusera vestidos mais de uma vez, sabia que não lhe era totalmente estranho o papel de Branca.
Apesar de todos os riscos, Maurício parou o carro num local ermo, indicado por Branca, em frente a um terreno baldio, numa área com casas grandes, com muros altos, no outeiro da Glória. E ali, enquanto olhava, beijava, acariciava com as duas mãos os seios de Branca, que tinha a parte superior do vestido aberta, Maurício circunvia, em frações infinitas de tempo, tudo o que o levara até justamente aquele ponto, naquela noite, em companhia de quem estava. Com o coração batendo muito forte, percebeu o que no íntimo já sabia: que sua atração desmesurada por seios pequenos, juvenis – que vinha desde os tempos em que eles despontaram na irmã e ela deixou que ele brincasse com eles – podia chegar às raias de tê-los em si.




SERGIO SANT’ANNA - Iniciou sua carreira de escritor em 1969, com os contos O Sobrevivente, livro que o levou a participar do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Embora já tenha publicado poesia, peças de teatro, novelas e romances, ele se considera primeiramente um contista.
A obra de Sérgio Sant'Anna é notória pelo caráter experimental, abordando temas urbanos de várias formas diferentes, algumas bastante transgressivas.
Seu romance mais célebre é As Confissões de Ralfo, publicado em 1975.
O autor já recebeu por quatro vezes o prêmio Jabuti, o último deles por O Vôo da madrugada, que recebeu também o premio APCA e o segundo  lugar no prêmio Portugal Telecom de literatura. Também por duas vezes, foi agraciado com o prêmio Status de Literatura, além de ter traduções de sua obra lançadas na Alemanha e na Itália.
Dentre seus contos mais famosos incluem-se Um discurso sobre o método, Marieta e Ferdinando, A mulher-cobra, Estranhos e O vôo da madrugada.

 


Adaptações


O conto A senhorita Simpson, contida no livro homônimo, foi adaptada para o cinema por Bruno Barreto, sob o título de Bossa Nova. Esse filme, no entanto, é considerado pela crítica e pelo autor como infiel à obra que o inspirou, sendo pouco mais que um cartão-postal da cidade do Rio de Janeiro.
Uma adaptação mais fiel foi a de Beto Brant em Crime Delicado, feita em 2005, baseada no romance de 1997.

 

Bibliografia


  • O sobrevivente (contos, 1969)
  • Notas de Manfredo Rangel, repórter (contos, 1973)
  • Confissões de Ralfo (romance, 1975)
  • Simulacros (romance, 1977)
  • Circo (poesia, 1980)
  • Um romance de geração (peça de teatro, 1981)
  • O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (contos, 1982) - Prêmio Jabuti
  • Junk-Box (poesia, 1984)
  • A tragédia brasileira (romance-teatro, 1984)
  • Amazona (novela, 1986) - Prêmio Jabuti
  • A senhorita Simpson (contos, 1989)
  • Breve história do espírito (contos, 1991)
  • O monstro (contos, 1994)
  • Um crime delicado (romance, 1997) - Prêmio Jabuti
  • O voo da madrugada (contos, 2003) - Prêmios Jabuti e Portugal Telecom de Literatura Brasileira




quinta-feira, 9 de junho de 2011

A Roda de Leitura que inicia um novo trimestre traz para nós a presença de Sérgio Sant'Anna que lerá contos de Vôo da Madrugada, seu mais recente livro que trabalha os limites entre o conto e o ensaio, traços marcantes de sua alentada e premiada ficção.