quarta-feira, 13 de abril de 2011

Cleonice Berardinelli - 11 de abril de 2011







Cleonice Berardinelli: Concerto de Poesia Portuguesa - 11 de abril de 2011


CLEONICE BERARDINELLI nasceu no Rio de Janeiro em agosto de 1916. Filha de militar, Dona Cleo, acompanhou seus pais nas mudanças e morou em Curitiba e Paranaguá (PR), Itu e São Paulo (SP) e retornou ao Rio aos 13 anos de idade. Formou-se em Letras Neolatinas em uma das primeiras turmas da Universidade de São Paulo, em 1938. De volta ao Rio, no inicio da década de 40, começou o magistério na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde ainda leciona). Ao ser indagada pelo professor Thier Martins Moreira sobre Fernando Pessoa, respondeu com sinceridade: “Não sei, professor, não sei quem é...” Na USP, o programa educacional parava em Eça de Queiroz. Thier, então, a presenteou com um livro e disse: “Leia e depois venha conversar.” A conversa nunca acabou. Sua tese de livre-docência foi sobre Fernando Pessoa, a primeira a ser escrita no Brasil. Manuel Bandeira foi um companheiro constante na Faculdade de Filosofia, onde lecionava Literatura Hispano-Americana, participaram de algumas bancas juntos e foi ele quem levou Dona Cleo pela primeira vez à Academia Brasileira de Letras. Setenta anos depois desse primeiro encontro, Cleonice foi eleita para ocupar a cadeira número 8 da ABL no dia 16 de janeiro de 2009. Especialista em Camões e Fernando Pessoa, é professora emérita da UFRJ e da PUC/RJ, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, consultora ad hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e consultora ad hoc da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. É acadêmica correspondente brasileira da Academia das Ciências de Lisboa desde 27 de novembro de 1975. Sua produção bibliográfica ultrapassa 70 artigos publicados, conta com cerca de 30 livros e 45 capítulos de livros, além de publicações em jornais de noticias, revistas e trabalhos completos em anais de congressos.Dona Cleo também foi ganhadora de diversos prêmios brasileiros e portugueses, dentre outros o Personalidade Cultural de 2009 pela União Brasileira de Escritores e o Grã-Cruz da Ordem da Espada, do governo de Portugal.



Concerto de Poesia Portuguesa
 com Cleonice Berardinelli



CAMÕES – SONETOS

Pede o desejo, Dama, que vos veja;
não entende o que pede,  está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado
que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,          
que não queira perpétuo o seu estado;
não quer, logo, o desejo o desejado,
por que não falte nunca onde sobeja. 

Mas este puro afeito em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da Natureza,

assim o pensamento (pola parte
que vai tomar de mim, terreste, humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
* * *
          
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saüdade
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de uma outra vontade
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio
que, duns e doutros olhos derivadas,
s’acrescentaram em grande e largo rio.

Ela [ou]viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
* * *

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
                                  (Rimas, 1598)
* * *

Se, depois de esperança tão perdida,
Amor pola ventura consentisse
que inda alguma hora breve alegre visse
de quantas tristes viu tão longa vida;

uma alma já tão fraca e tão caída,
por mais alto que a sorte me subisse,
não tenho para mim que consentisse
alegria tão tarde consentida.

Não tão somente Amor me não mostrou
uma hora em que vivesse alegremente,
de quantas nesta vida me negou;

mas inda tanta pena me consente,
que com contentamento me tirou
o gosto de alguma hora ser contente.
* * *

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais
e, se torna, não tornam as idades.

Rezão é já, ó anos, que vos vades,
porqu’estes tão ligeiros que passais,
nem todos pera um gosto são iguais,
nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
que quase é outra cousa; porqu’os dias
têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
que do contentamento são espias.
* * *

CAMÕES – SONETOS

1) Pus o coração nos olhos

MOTE SEU

Pus o coração nos olhos,
e os olhos pus no chão
por vingar o coração.

VOLTA

O coração, envejoso
como dos olhos andava,
sempre remoques me dava
que não era o meu mimoso.
Venho eu, de piadoso
do senhor meu coração,
boto os meus olhos no chão.
* * *

2) Da doença em que ardeis

A uma dama que estava doente

MOTE


Da doença em que ardeis
eu fora vossa mezinha
só com vós serdes a minha.

VOLTAS

É muito para notar
cura tão bem acertada,
que podereis ser curada
somente com me curar.
Se quereis, Dama, trocar,
ambos temos a mezinha:
eu a vossa, e vós, a minha.

Olhai que não quer Amor
(por que fiquemos iguais),
pois meu ardor não curais,
que se cure vosso ardor.
Eu cá sinto a vossa dor
e, se vós sintis a minha,
dai e tomai a mezinha.

- O mote, do próprio Camões, sintetiza lapidarmente toda a composição: ele seria o remédio que curaria a febre da dama, se esta quisesse curar a febre que ele sente por ela.

 - Publ. pela 1ª vez em “Rhythmas” (1595).

Notas:
v.2 – mezinha – remédio.
v.13 – pois – já que; não curais – não tratais.
v.13-14 – ardor – tomado no duplo sentido de paixão e febre.
* * *

3) Deu, Senhora, por sentença


A outra dama, que estava também doente.

MOTE


Deu, senhora, por sentença
Amor, que fôsseis doente,
para fazerdes à gente
doce e fermosa a doença.

VOLTAS

Não sabendo Amor curar,
foi a doença fazer
fermosa, para se ver,
doce para se passar.
Então, vendo a diferença
que há de vós a toda a gente,
mandou que fôsseis doente
para glória da doença.

E digo-vos, de verdade,
que a saúde anda envejosa,
por ver estar tão fermosa
em vós essa infirmidade.                      
Não façais logo detença,
senhora, em estar doente,
porque adoecerá  gente
com desejos da doença.

Que eu, por ter, fermosa Dama,
a doença que em vós vejo,
vos confesso que desejo
de cair convosco em cama.
Se consentis que me vença
este mal, não houve gente
de saúde tão contente,
como eu serei da doença.

O mote, ao qual Camões acrescenta o sal do seu humor atrevido e muito ao gosto da época, resume todo o sentido das redondilhas.
* * *

4) Esses alfinetes vão
                  
Trovas que mandou com um papel de alfinetes a ũa dama.

Esses alfinetes vão
a vos picarem, não mais,
só por que julgueis então                      
o como me picarão
os com que vós me picais.
Mas os que dessas estrelas
vêm, têm pontas tão agudas
que, em que estoutros vão co elas,
podem-vos dar picadelas,
mas os vossos dão feridas.

Assim que, se bem notais
no como ambos debatem,
nunca podem ser iguais;
que, inda que estes lá maltratem,
esses cá maltratam mais.
Porém, já que Amor consente
em piques tão desiguais,
onde vós sois mais valente,
eu, Senhora, sou contente
do que vos contentar mais.

Venham os alfinetes cá
desses olhos, por que acertem
donde acerto já não há;
porém os meus, que vão lá,
só quero que vos apertem.
E deixando o mais passado,
fazei qu’ este papel seja
pregado, digo, empregado,
porque do seu gasalhado
eu mesmo lhe tenho enveja.

E se eles em vós se pregam,
por força os hei-de envejar,
não só porque bem se empregam,
mas porque, Senhora, chegam
onde eu não posso chegar.
Lá vão e lá ficarão
adonde continuamente
a par de si vos terão;
enfim, lá vos picarão,
eu cá picarei no dente.
* * *

5) Mas porém a que cuidados

A dona Francisca de Aragão, mandando-lhe esta regra, que lha glosasse.

MOTE

Mas porém a que cuidados?

VOLTA

Tanto maiores tormentos
foram sempre os que sofri,
daquilo que cabe em mim,
que não sei que pensamentos
são os pera que nasci.
Quando vejo este meu peito
a perigos arriscados
inclinado, bem sospeito
que a cuidados sou sojeito:
mas porém a que cuidados?

OUTRA [VOLTA] AO MESMO

Que vindes em mim buscar,
cuidados, que sou cativo
e não tenho que vos dar?
Se vindes a me matar,  
já há muito que não vivo;
se vindes, porque me dais
tormentos desesperados,
eu, que sempre sofri mais,
não digo que não venhais:
mas porém a quê, cuidados?

OUTRA [VOLTA] AO MESMO

Se as penas que Amor me deu
vêm por tão suaves meos,
não há que temer receos,
que val um cuidado meu
por mil descansos alheos.
Ter nuns olhos tão fermosos
os sentidos enlevados,
bem sei qu’em baixos estados,
são cuidados perigosos.
Mas porém, ah! que cuidados!

Carta que Luís de Camões mandou
 a Dona Francisca de Aragão,
com as glosas acima:

Senhora
Deixei-me enterrar no esquecimento de vossa mercê, crendo me seria assim mais seguro; mas agora que é servida de me tornar a ressuscitar, por mostrar seus poderes, lembro-lhe que sua vida trabalhosa é menos de agradecer que sua morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se dela, não me fica mais que desejar que poder acertar com este mote de vossa mercê, ao qual dei três entendimentos, segundo as palavras dele puderam sofrer: se forem bons, é o mote de vossa mercê; se maus, são as glosas minhas.

Nota biográfica
D. Francisca de Aragão foi uma formosa dama da corte da rainha D. Catarina, à qual muitos poetas cortesãos dirigiram homenagem poética.
* * *

6) Campos bemaventurados

 MOTE ALHEIO

Campos bemaventurados,
tornai-vos agora tristes;
que os dias em que me vistes
alegre, já são passados.

GLOSA

Campos cheios de prazer,
vós que estais reverdecendo,
já me alegrei com vos ver;
agora venho a temer
que entristeçais em me vendo.
E pois a vista alegrais
dos olhos desesperados,
não quero que me vejais,
para que sempre sejais
campos bemaventurados.

Porém se, por acidente,
vos pesar de meu tormento,
sabereis que Amor consente
que tudo me descontente,
senão descontentamento.
Por isso vós, arvoredos,
que já nos meus olhos vistes
mais alegrias que medos,
se mos quereis fazer ledos,
tornai-vos agora  tristes.

Já me vistes ledo ser;
mas despois que o falso Amor
tão triste me fez viver,
ledos folgo de vos ver,
por que me dobreis a dor.
E se este gozo sobejo
de minha dor me sentistes,
julgai quanto mais desejo
as horas que vos não vejo
que os dias em que me vistes.

O tempo, que é desigual,
de secos, verdes vos tem;
porque em vosso natural
se muda o mal para o bem,
mas o meu para mór mal.
Se perguntais, verdes prados,
pelos tempos diferentes
que de Amor me foram dados:
tristes, aqui são presentes,
alegres, já são passados.
* * *

7) Não sei se me engana Helena

As três damas que lhe diziam que o amavam

MOTE

Não sei se me engana Helena,
se Maria, se Joana;
não sei qual delas me engana.
VOLTAS

Uma diz que me quer bem,
outra jura que mo quer;
mas em jura de mulher
quem crerá, se elas não crêm?
Não posso não crer a Helena,
a Maria, nem Joana;
mas não sei qual mais m’engana.

Uma faz-me juramentos
que só meu amor estima;
a outra diz que se fina;
Joana que bebe os ventos.
Se cuido que mente Helena,
também mintirá Joana;
mas quem mente não engana.



FERNANDO PESSOA – ele mesmo

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz?  Não sei:
Fui-o outrora agora.
***

AUTOPSICOGRAFIA


O POETA é um fingidor.
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
       Nov. 1932
* * *


CONSELHO

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês ...
* * *

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação;
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!  
      (1933)
* * *

Não meu, não meu é quanto escrevo.
A quem o devo?
De quem sou o arauto nado?
Por que, enganado,
Julguei ser meu o que era meu?
Que outro mo deu?
Mas, seja como for, se a sorte
For eu ser morte
De uma outra vida que em mim vive,
Eu, o que estive
Em ilusão toda esta vida
Aparecida,
Sou grato ao que do pó que sou
Me levantou.
(E me fez nuvem um momento
De pensamento.)
(AO de quem sou, erguido pó,
Símbolo só.)
* * *

  DOBRE

       Peguei no meu coração
       E pu-lo na minha mão

  Olhei-o como quem olha
       Grãos de areia ou uma folha.

       Olhei-o pávido e absorto
       Como quem sabe estar morto;

       Com a alma só comovida
       Do sonho e pouco da vida.
  * * *

  Onde pus a esperança, as rosas
       Murcharam logo.
       Na casa, onde fui habitar,
  O jardim, que eu amei por ser
       Ali o melhor lugar,
       E por quem essa casa amei –
       Deserto o achei,
       E, quando o tive, sem razão p’ra o ter.

       Onde pus a afeição, secou
       A fonte logo.
       Da floresta, que fui buscar
       Por essa fonte ali tecer
       Seu canto de rezar –
       Quando na sombra penetrei,
       Só o lugar achei
       Da fonte seca, inútil de se ter.

       P´ra quê, pois, afeição, ‘sperança,
       Se perco, logo
       Que as uso, a causa p’ra as usar,
       Se tê-las sabe a não as ter?
       Crer ou amar –
       Até a raiz, do peito onde alberguei
       Tais sonhos e os gozei,
       O vento arranque e leve onde quiser
       E eu os não possa achar!   (1920)
       * * *

       LIBERDADE

  Ai que prazer
       Não cumprir um dever,
       Ter um livro para ler
       E não o fazer!
       Ler é maçada.
       Estudar é nada.
       O sol doira
       Sem literatura.

       O rio corre, bem ou mal,
       Sem edição original.
       E a brisa, essa,
       De tão naturalmente matinal,
       Como tem tempo não tem pressa...

       Livros são papéis pintados com tinta.
       Estudar é uma coisa em que está indistinta
       A distinção entre nada e coisa nenhuma.

       Quanto é melhor, quando há bruma,
       Esperar por D. Sebastião,
       Quer venha ou não!

       Grande é a poesia, a bondade e as danças...
       Mas o melhor do mundo são as crianças,
       Flores, música, o luar, e o sol, que peca
       Só quando, em vez de criar, seca.

       O mais do que isto
       É Jesus Cristo,
       Que não sabia nada de finanças
       Nem consta que tivesse biblioteca...


ALBERTO CAEIRO


“O GUARDADOR DE REBANHOS”

          ( 1911 – 1912)

I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela. 

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Com um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
[...]   8-3-1914
           
IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando, num dia de calor,
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

X

“Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”

“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”

“Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.”

“Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”
* * *

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir
 vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma cousa que está
                                                                 comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores
           altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que
                      sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol
                  com a cara dela no meio.
                                                                (10-7-1930)
* * *

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar,
                                            porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um
                                        acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas
                                    diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o
                                                          pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las
                                                               todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
* * *

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor –
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.   (6-7-1914)
* * *

RICARDO REIS


Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranqüilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza ...

Á beira-rio,
Á beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanço
De estar vivendo.

O Tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.        
            (12-06-1914)
* * *

Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.
(01-10-1930)
* * *

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
            Não menos nos limita.
Que os Deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
            Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
            Homem, é igual aos Deuses.
 (1-11-1930)
* * *

Para ser grande, sê inteiro: nada
            Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
            No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
            Brilha, porque alta vive.
(Publ. Presença, nº 37)
* * *

Ponho na altiva mente o fixo esforço
            Da altura, e à sorte deixo,
            E a suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
            Súbdita a frase o busca
E o ’scravo ritmo o serve.
                  (Publ. Athena, outubro 1924)


ÁLVARO DE CAMPOS

A FERNANDO PESSOA
DEPOIS DE LER O SEU DRAMA STÁTICO
«O MARINHEIRO» EM «ORPHEU

Depois de doze minutos
            Do seu drama O Marinheiro,
            Em que os mais ágeis e astutos
            Se sentem com sono e brutos,
5          E de sentido nem cheiro,
            Diz uma das veladoras
            Com langorosa magia:

            De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos nós falando ainda?

            Ora isso mesmo é que eu ia
            Perguntar a essas senhoras...
                        1915    Solução Editora, 4, 1929.
            * * *

ANIVERSÁRIO

            No tempo em que festejavam o dia dos meus
                                                                       anos,
            Eu era feliz e ninguém estava morto.
            Na casa antiga, até eu fazer anos era uma
                                                 tradição de há séculos,
            E a alegria de todos, e a minha, estava certa
                                      com uma religião qualquer.

5          No tempo em que festejavam o dia dos meus
                                                                            anos,
            Eu tinha a grande saúde de não perceber
                                                            coisa nenhuma,
            De ser inteligente para entre a família,
            E de não ter as esperanças que os outros
                                                          tinham por mim.
            Quando vim a ter esperanças, já não sabia
                                                          ter esperanças.
10        Quando vim a olhar para a vida, perdera o
                                                         sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
            O que fui de coração e parentesco,
            O que fui de serões de meia-província,
            O que fui de amarem-me e eu ser menino,
15        O que fui, ai, meu Deus!, o que só hoje sei  
                                                                   que fui...
            A que distância!...
            (Nem o eco...)
            O tempo em que festejavam o dia dos meus
                                                                            anos!

            O que eu sou hoje é como a humidade no
                                              corredor do fim da casa,

20        Pondo grelado nas paredes...
            O que eu sou hoje (e a casa dos que me  
             amaram treme através das minhas lágrimas),
            O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
            É terem morrido todos,
            É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como
                                                         um fósforo frio...

25        No tempo em que festejavam o dia dos meus
                                                                          anos...

             [...]

            Pára, meu coração!
            Não penses! Deixa o pensar à cabeça!
            Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
            Hoje já não faço anos.
40        Duro.
            Somam-se-me dias.
            Serei velho quando o for.
            Mais nada.
            Raiva de não ter trazido o passado roubado
                                                              na algibeira!

45        O tempo em que festejavam o dia dos meus
                                                                        anos!...
                       13-6-1930    
            * * *

            Depus a máscara e vi-me ao espelho...
            Era a criança de há quantos anos...
            Não tinha mudado nada...

            É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
5          É-se sempre a criança,
            O passado que fica,
            A criança.

            Depus a máscara, e tornei a pô-la.
            Assim é melhor.
10        Assim sou a máscara.

            E volto à normalidade como a um terminus
                                                                      de linha.
                            11-8-1934
            * * *

            O que há em mim é sobretudo cansaço –
            Não disto nem daquilo,
            Nem sequer de tudo ou de nada:
            Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
5          Cansaço.

            A subtileza das sensações inúteis,
            As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em  
                                                     alguém,
            Essas coisas todas –
10        Essas e o que falta nelas eternamente –;
            Tudo isso faz um cansaço,
            Este cansaço,
            Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
15        Há sem dúvida quem deseje o impossível,
            Há sem dúvida quem não queira nada –
            Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
            Porque eu amo infinitamente o finito,
            Porque eu desejo impossivelmente o possível,
20        Porque quero tudo, ou um pouco mais, se
                                                                      puder ser,
            Ou até se não puder ser...

            E o resultado?
            Para eles a vida vivida ou sonhada,
            Para eles o sonho sonhado ou vivido,
25        Para eles a média entre tudo e nada, isto é, a
                                                                        vida...
            Para mim só um grande, um profundo,
            E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
            Um supremíssimo cansaço,
            Íssimo, íssimo, íssimo,
30        Cansaço...
                   9-10-1934
            * * *
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