sábado, 10 de dezembro de 2011
Leituras de Natal - A Bíblia: um diário de leitura, com Luiz Paulo Horta - 05/12/2011
Luiz Paulo Horta
A Bíblia um Diário de Leitura (fragmento)
Capítulo 2 - Gêneros literários: o Gênesis
Poucas coisas soa tão importantes, na Bíblia, quanto a distinção entre os gêneros literários – os diferentes estilos em que os seus vários capítulos foram escritos. Nessa vasta coleção de textos, há os que pertencem ao gênero histórico – o Livro dos Reis, o Livro de Esdras, o de Neemias, o dos Macabeus; há os livros de sabedoria – Provérbios, Eclesiástico; os que são verdadeiros poemas – Jó, o Cântico dos Cânticos, a coleção de Salmos; os Livros Proféticos; os que pretendem contar histórias edificantes – Ruth, Tobias.
E há o caso muito especial do Gênesis – logo o primeiro livro da série, atribuído a Moisés, e talvez o que maiores dificuldades coloque ao leitor moderno.
Já houve quem perdesse a fé porque não conseguiu estabelecer a relação entre a história de Adão e Eva e as contínuas descobertas da ciência relacionadas com o homem primitivo. Nos Estados Unidos, recentemente, chegaram a ocorrer conflitos de opinião entre os defensores da tese “criacionista” – o mundo começando num momento dado, a partir do fiat divino – e a teoria da evolução.
É um choque que não deveria existir. A Igreja católica, por exemplo, há muito tempo deixou de discutir com a ciência sobre os primórdios do gênero humano. Você pode acreditar no fiat, ou pode achar que os primeiros homens foram surgindo aos poucos, de dentro da cadeia evolutiva – contanto que você admita que, num determinado momento dessa cadeia, a ação divina introduziu um “princípio”, um fato novo, que não pode ser explicado pelo simples encadeamento de fenômenos naturais.
A confusão vem de se querer tomar os primeiros capítulos da Bíblia como se fossem uma reportagem sobre o começo do mundo, o que eles não são – assim como o Apocalipse não parece uma narração “realista” sobre o final dos tempos (e é significativo que, na Bíblia, tanto o começo como o fim estejam envolvidos nesse halo de mistério).
Voltando ao Gênesis: aquelas narrativas de abertura compõem o que se pode chamar de uma história sagrada – tão ou mais verdadeira do que a “outra” história, mas narrada num tom absolutamente peculiar. Esse tom se parece com o das cosmogonias – histórias da criação – vindas de outras culturas. Estamos pisando, ao menos em parte, no território do mito.
Essa palavra talvez sugira, para o leitor moderno, o mesmo que uma invenção, uma ficção, uma lenda. Assim ela foi encarada ao longo de todo o século XIX, quando uma escola de estudos bíblicos procurou separar, nas Escrituras, o que, ali, seria a verdade religiosa da simples imaginação de povos primitivos. Foi o que se chamou de “desmitologização” da Bíblia, e que culminou, mais recentemente, na exegese alemã de Rudolf Bultman.
Mas, no século XX, surgiram outros caminhos, a partir do trabalho de estudiosos como Mircea Eliade, que devolveu ao mito o seu sentido original. Explica Eliade (em O sagrado e o profano): “O mito conta uma história sagrada – isto é, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo. Mas contar uma historia sagrada equivale a revelar um mistério. Narrar um mito é proclamar o que se passou ‘nas origens’. E, uma vez revelado, o mito estabelece uma verdade absoluta. ‘É assim porque foi dito que é assim’, dizem os esquimós Netsalik para defender os fundamentos da sua história sagrada e das tradições religiosas.”
De novo Eliade: “O mito proclama a aparição de uma nova situação cósmica, ou de um acontecimento primordial. É, assim, a narrativa de uma criação: ele conta como alguma coisa começou a ser. Eis porque o mito é solidário da ontologia (a ciência do ser): ele só fala de realidades, daquilo que aconteceu realmente (mas num plano superior de realidade que acaba introduzindo um estilo diferente de narração).”
Ainda Eliade: “O mito revela a sacralidade absoluta, porque ele descreve a atividade criadora dos deuses. Em outras palavras, o mito enumera as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo. Por essa razão, em muitos cultos primitivos os mitos não podem ser recitados em qualquer época ou em qualquer situação, mas somente nas estações ritualmente propícias ou nos intervalos de cerimônias religiosas.”
É a irrupção do sagrado no mundo, descrita pelo mito, que funda realmente o mundo. E é por isso que o mito, descortinando esse impulso de energia criadora, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas.
É esse mistério original que constitui a “história sagrada” e que foge aos condicionamentos do pensamento racional, ou cientifico (na verdade, ele não cabe nessas formas tradicionais de narrativa). Parece um terreno totalmente estranho à mentalidade moderna – que, de fato, fez todo o esforço para pensar “racionalmente”, “objetivamente”.
Mas esse esforço nunca foi totalmente coroado de êxito. A modalidade do mito ficou escondida nos desvãos da nossa consciência; e não foi por acaso que Freud (para não falar em Jung) jogou sondas nessa direção – mesmo acreditando, como homem nascido no miolo do século XIX, que estava apenas contribuindo para o avanço da ciência.
É só recuar um pouco na nossa história pessoal: se você teve um avô, ou um tio, contador de histórias infantis, jamais as terá esquecido. E por quê? Não será porque elas falavam ao coração, à imaginação, passando por cima (ou por baixo) das barreiras da lógica? E, nessa liberdade, quanta coisa elas diziam! Talvez não precisemos chegar aos irmãos Grimm, que achavam serem os contos de fada resíduos de velhos mitos, mas o método é parecido.
A criatura lógica que está em nós quereria mais. Mas não é esse o processo da Revelação primordial. Ela não caminha por demonstrações; mostra por partes, e às vezes mais esconde do que mostra. Por exemplo, nas velhas escrituras (e não só cristãs), a impossibilidade de olhar para o rosto de Deus. Moisés vê o Altíssimo “pelas costas”. Quem olhar de frente, morre (na Grécia antiga, esse é o padrão de várias histórias sobre Júpiter, como a lenda de Sêmele). Seria mais verdade/realidade do que o ser humano pode suportar. Pensem no Cristo, na facilidade com que ele desliza para a parabólica – a dose de verdade / realidade que uma pessoa comum pode assimilar.
Quando você abandona os mitos “originais”, acaba desembocando nos mitos de substituição, de que a história moderna está repleta. Querendo ser a apoteose da razão, a Revolução Francesa apelou para mitos – de curtíssima duração. Mitos do século XIX foram a Ciência, o Progresso, a Evolução. Não é que não exista alguma coisa por trás dessas palavras; mas elas foram infladas na tentativa de criar uma visão de mundo que estava faltando.
O caso mais recente, e mais impressionante, é o do marxismo: sempre afirmando estar fazendo ciência (o “socialismo científico”), Marx lançou as bases para o que seria o mais famoso “mito de substituição” dos tempos modernos. A visão Marxista postulava um agente messiânico – a classe operária; um “final dos tempos” (a sociedade sem classes) e um novo paraíso terrestre, em que desapareceriam os conflitos e até mesmo a necessidade de Estado.
Que essa visão messiânica tenha, durante tanto tempo, fascinado amplas parcelas da mentalidade moderna é uma demonstração expressiva de que a possibilidade e a própria necessidade do mito continuam embutidas em nosso mundo interior.
Capítulo 5 - O pecado original
Deixando o território da linguagem mítica, a teologia moderna se debruça sobre o que é, ou pode ter sido, o pecado original. Uma das melhores interpretações é a do padre François Varillon, ilustre jesuíta francês falecido há duas décadas, que passo a historiar poupando o leitor de muitas aspas.
Por que falar do pecado original? Jesus nunca disse um palavra sobre isso, e o Evangelho também não trata disso, pelo menos diretamente.
As diferenças estão em são Paulo – por exemplo, na Epístola aos Romanos: “... por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte; e assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecamos...”
E mais adiante: “... como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida.”
São Paulo foi o primeiro teólogo – o maior de todos. Mas ele também pode estar recorrendo, aqui, à linguagem mítica, que parece a mais apropriada para a narrativa das origens. Com isso concorda um importante teólogo moderno, Karl Rhaner, quando diz: “A história bíblica sobre o pecado da primeira pessoa, ou das primeiras pessoas, de modo algum deve ser entendida como um relato histórico.”
Adverte o padre Varillon: houve pensadores do século XIX que quiseram explicar o cristianismo a partir do pecado original, como se a Queda de que fala o Gênesis fosse a pedra de toque sobre a qual se ergueu o cristianismo.
Ele comenta: então, pode-se até formar uma ideia meio caricata da estrutura do Universo. Deus, o supremo eletricista, tinha fabricado o mundo com uma fiação que funcionava perfeitamente. O ser humano tratou de embaralhar essa fiação. Daí a decisão do supremo eletricista de enviar o seu filho para consertar os erros, de modo que tudo passou a andar melhor que no plano primitivo.
Essa é a visão com a qual o padre Varillon definitivamente não concorda. É preciso – diz ele – abandonar a ideia, ou melhor, a mitologia de um tempo em que o primeiro homem teria vivido, antes de ter pecado, num estado de beatitude e de perfeição. Não há nenhum dogma que imponha essa interpretação.
Vale a pena lembrar que o gênero literário dos começos do Gênesis é o gênero sapiencial, em que se exprimem a reflexão e a experiência de um sábio. Em Gênesis 2/3, estamos diante não de uma narrativa histórica, como a epopeia de Davi ou de Salomão, mas de um escrito de sabedoria, cuja ponta é a resolução de um enigma, o maior enigma da condição humana.
O que o autor desses capítulos quis nos mostrar é, antes de tudo, a situação do homem, o do século XX ou de qualquer outro tempo, em relação a Deus e em relação ao pecado. Etimologicamente, o termo hebreu “adama” significa a terra, o solo, a argila vermelha. “Adam” é o terroso, o argiloso, aquele que vem da terra.
Prossegue Varillon:
“Com o risco de espantar vocês, eu afirmo, não como opinião pessoal, mas em nome da Igreja: se a Igreja diz que a causa do pecado é Adão, ela nunca definiu quem é Adão. A maior parte dos teólogos contemporâneos admite que Adão é a humanidade inteira. E, em consequência, a história de Adão, que nos foi contada, é também a nossa história: o pecado de Adão é o nosso pecado.”
“É verdade”, ele prossegue, “que essa história nos diz que Adão foi criado num estado de santidade e de justiça. Seria preciso, a partir daí, concebê-lo como um homem de uma inteligência e de uma liberdade perfeitas, uma espécie de super-homem em relação aos homens que nós conhecemos? Isso não corresponde à descrição que a ciência nos dá dos primeiros homens emergindo lentamente da animalidade.”
O que a Bíblia nos apresenta é o fim para o qual Deus encaminhou o homem: a sua divinização. A perfeição do primeiro homem está em que ele não é como os outros seres da natureza, animais ou vegetais, mas é chamado por Deus, desde o inicio, a uma finalidade propriamente divina: um apelo para entrar no amor de Deus, para partilhar eternamente a própria vida de Deus.
Dito de outra maneira: a perfeição do homem é a perfeição de uma vocação e não de uma situação. É o que a Bíblia nos ensina quando diz que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.
“Deus não fabricou uma liberdade, pois cabe ao homem, criado com a possibilidade da liberdade, tornar-se livre ele mesmo. Deus cria o homem como alguém que é capaz de criar a si mesmo. É por isso que eu [Varillon] não gosto da expressão ‘Deus criou o homem livre’. Pois isso implica dois erros: colocar a criação no passado e estimular o sentimento de que a liberdade é um presente, uma coisa pronta, quando a verdade é que a liberdade é o contrário de uma coisa pronta. Ela só é liberdade quando nós mesmos a tornamos real.
“Isso é o que Deus quer: ele cria o homem como um ser divinizável. Essa é a definição mais profunda que se possa dar do ser humano, para além de tudo o que nos dizem as ciências humanas. Mas o homem não pode divinizar-se sozinho: é preciso que ele acolha o dom de Deus, pois é Deus quem diviniza. Não é o homem, por si mesmo, que vai suplantar o abismo infinito que existe entre ele e Deus, porque sua origem é terrestre.
“Essa origem terrestre é, para o homem, uma fonte de dessemelhança em relação a Deus. Pois a voz da natureza faz ressoar constantemente no homem um apelo para viver não para Deus, ou para os outros homens, mas para si mesmo, egoisticamente, como os outros seres da natureza que vivem segundo o seu instinto. Eis o que é pecado original: não se trata de uma origem cronológica, mas da origem da natureza humana, da própria raiz da existência.”
Enfatiza o padre Varillon.
“Fazemos começar a nossa história antes do pecado e temos a impressão de que o estado de Adão, antes do pecado, não tinha nada de comum com o estado que os seres humanos conheceram depois. E nos pomos a perguntar, um pouco ingenuamente: se Adão não tivesse feito essa besteira, se ele fosse um pouco mais razoável, um pouco mais firme com sua mulher, muitas catástrofes teriam sido evitadas, teríamos ficado na felicidade perfeita, firmemente estabelecidos na virtude. Francamente, o que é que nós sabemos disso? Isso é pura imaginação, terreno fértil para o infantilismo.
“Supondo que o primeiro homem não tivesse pecado, o que é que nos garante que o segundo não o faria? Por que não o terceiro, ou o quarto? E depois, eis o essencial: assim se chegaria à ideia de uma humanidade que teria atingido a glória perfeita da sua divinização dispensando totalmente o Cristo. Chega-se a imaginar que, se Adão não tivesse pecado, ele teria tido o poder de conduzir sozinho toda a sua descendência humana para a divinização. Infelizmente, ele fez uma besteira, e foi preciso que Jesus Cristo viesse consertar essa falta...
“Pensando melhor”, conclui Varillon, “basta ler o Novo Testamento para descobrir que há uma única fonte de divinização, que é o Cristo. Desde o inicio, Cristo foi querido por Deus, e, como diz são Paulo, nós fomos criados nele. A nossa humanidade, desde as origens, está destinada a entrar na filiação divina através do cristo.
“Mas eu peço encarecidamente aos cristão que não sejam triunfalistas, que não se apresentem diante dos incrédulos como alguém que pode fornecer uma explicação. Por que é que o homem é pecador? Não existe resposta. O pecado está na origem da nossa existência, e nós estamos, desde a origem, nos braços de Deus como nos braços de um pai que perdoa. Esse é o significado, mas não é uma explicação. A resposta de Deus não é uma resposta teórica: Ele entra no mundo do pecado e ali encontra a morte. Esta é a Sua humanidade.”
Capítulo 8 - Jacó, o esperto
De Isaac, filho de Abraão, a Bíblia não fala muito. Um espírito maldoso diria que, depois do susto que ele levou, faltou-lhe ânimo para correr novos riscos. (Mas Jesus e os profetas se referiam ao “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”.) Seu filho Jacó, ao contrário, é das figuras mais pitorescas da Bíblia – o pai dos doze filhos que formarão as doze tribos de Israel. Ele aparece numa daquelas equações de irmãos com que a Bíblia às vezes trabalha – Esaú e Jacó, Caim e Abel, Moisés e Aarão.
Esaú é o primogênito, tem todas as regalias, mas é um estouvado. Jacó, símbolo da esperteza (como Ulisses, na velha Grécia), aproveita-se disso para roubar-lhe a primogenitura.
Primeiro, na famosa cena do prato de lentilhas: Esaú chega esfomeado do campo. Jacó preparara lentilhas suculentas. “Dá-me essas lentilhas”, diz Esaú. E o outro: “Vende-me primeiro o teu direito à primogenitura.” Esaú jurou e vendeu. Talvez achasse que, mais adiante, poderia voltar atrás.
O segundo episódio é mais sério. Isaac está velho, quase cego, vai morrer. É a hora de dar a bênção final, definitiva, que consagra o primogênito – como um rei que escolhe o seu sucessor. Rebeca, mulher de Isaac, ajuda Jacó a enganar o pai. Jacó veste-se com uma roupa peluda (porque Esaú era cabeludo) e vem para receber a bênção. Quando Esaú chega do campo, está feito. A bênção é irrevogável.
Mas o que é isso?, dirá o leitor de hoje. Que moral é essa? O filho engana o pai, ajudado pela mãe? É a moral – digamos, os costumes – de um período que a Bíblia descreve, infinitamente remoto. A Revelação não atropela as épocas, nem os costumes. Procede por etapas. Foi o que já vimos na história de Abraão e Sara. Mas Rebeca enganando o marido! Diz uma senhora muito sábia, minha conhecida: “Ela sabia que Esaú era estouvado, que a liderança tinha de passar por Jacó.” Pragmatismo feminino.
O fato é que, depois disso, Jacó ainda dá muitas outras provas de esperteza (e , por sua vez, é enganado por Labão, na história maravilhosa do seu namoro com Raquel – “Sete anos de pastor serviu Jacó a Labão, pai de Raquel, serrana bela...”).
Mas, um dia, ele se transforma. Depois de um período de exílio (quando teve de fugir da cólera de Esaú), ele está de volta, com sua mulher, seus filhos, seus rebanhos. O momento é grave, prenhe de ameaças, porque ele vai reencontrar Esaú.
“Naquela noite, ele se levantou com suas duas mulheres, suas duas servas e seus onze filhos e passou o vau do Jaboc. Tomou-os, e os fez passar a torrente com tudo o que lhe pertencia.
“Jacó ficou só; e alguém lutava com ele até o romper da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, tocou-lhe aquele homem na articulação da coxa e esta deslocou-se, enquanto Jacó lutava com ele. E disse-lhe: ‘Deixa-me ´partir, porque a aurora se levanta.’ ‘Não te deixarei partir’, respondeu Jacó, ‘antes que me tenhas abençoado.’Ele perguntou-lhe: ‘Qual é o teu nome?’ ‘Jacó.’ ‘Teu nome não será mais Jacó’, tornou ele, ‘mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e venceste.’ Jacó perguntou-lhe: ‘Peço-te que me digas qual é o teu nome.’‘ Por que me perguntas o meu nome?’, respondeu ele. E abençoou-o no mesmo lugar. Jacó chamou àquele lugar Fanuel, ‘porque’, disse ele, ‘ eu vi a Deus face a face, e conservei a vida.’”
Misterioso trecho, que desde então passou a ser imagem, o símbolo do combate espiritual. Jacó sai vencedor, mas ferido na perna; pagou um preço pela vitória.
É o combate que espera todos os que, neste mundo, querem avançar nos caminhos do espírito – o caminho da vida.
Podia ser mais fácil, dirá você; mas é assim, e não só na nossa tradição. Diz um mestre hindu: “Estreito como o fio da navalha é o caminho da salvação.” O Buda teve de renunciar ao seu reino e a todos os seus para ir em busca da sabedoria.
A tradição cristã fala disso em tons igualmente vigorosos – como são Pedro na sua primeira Carta: “É isto o que constitui a vossa alegria, apesar das aflições passageiras a vos serem causadas ainda por diversas provações, para que a prova a que é submetida a vossa fé (mais preciosa que o ouro perecível, o qual, no entretanto, não deixamos de provar ao fogo) redunde para vosso louvor, para vossa honra e para vossa glória, quando Jesus Cristo se manifestar.”
É a ideia da prova – da dificuldade que purifica o espírito, obrigando-o a algumas definições vitais.
Jacó passou pela difícil prova. Encontra o irmão que teria todos os motivos para desejar a sua perda. Mas os dois chegam a um acordo precário. Naquele tempo, de costumes nômades, sempre era possível uma redistribuição de terras.
E o Senhor apareceu de novo a Jacó. “Teu nome, disse-lhe, é Jacó. Tu não te chamarás mais assim, mas Israel.” E continuou: “Sê fecundo e multiplica-te. De ti nascerá um povo e uma assembleia de povos; e de teus rins sairão reis.”
No mesmo lugar onde Deus lhe falou, Jacó erigiu um altar sobre o qual fez uma oferenda. E deu o nome de Betel ao lugar onde Deus lhe tinha falado. Assim começava a história de Israel.
Capitulo 19 - A queda
Poucas histórias são tão concisas e eficazes, na Bíblia, como a que descreve o pecado de Davi. “ Na época em que os reis saem para a guerra”, diz o Livro de Samuel, “Davi enviou Joab com os seus suboficiais e todo o Israel, que devastaram a terra dos amonitas e sitiaram Raba.” Curioso texto, retratando uma época em que a guerra era tão comum que tinha até estação propícia.
Davi ficara em Jerusalém. Uma tarde, passeando pelo terraço de seu palácio, avistou lá embaixo uma mulher que se banhava e que era muito formosa. Informando-se a respeito dela, disseram-lhe: “É Betsabé, filha de Elião, mulher de Urias, o hiteu.”
Davi manda mensageiros trazerem a mulher. “Ela veio, e Davi dormiu com ela.” Em pouquíssimo tempo, Betsabé descobre que está grávida e manda a informação ao rei. Davi, então, envia uma mensagem ao seu general, Joab: “Manda-me Urias, o hiteu.”
Chega Urias, que estava em campanha, e Davi lhe pede notícias de Joab, do exército e da guerra. Terminada a entrevista, ele diz ao guerreiro: “Desce à tua casa e lava os teus pés.” Urias saiu do palácio do rei, e este mandou que o seguissem. A implicação era óbvia: o “descanso do guerreiro” criaria o álibi para a gravidez de Betsabé. “Mas Urias não desceu à sua casa: dormiu à porta do palácio, com os demais servos de seu amo.”
Informado disso, o rei chama novamente o guerreiro: “Não voltaste porventura de uma viagem? Por que não vai à tua casa?” Resposta de Urias: “A Arca se aloja debaixo de uma tenda, assim como Israel e Judá. Joab, meu chefe, e seus suboficiais acampam ao relento, e teria eu ainda a coragem de entrar em minha casa para comer, beber e dormir com minha mulher? Pela tua vida, não farei tal coisa.”
Davi lhe diz: “Fica ainda hoje aqui; amanhã te despedirei.” Urias ficou. No dia seguinte, Davi o convidou, fez com que ele comesse e bebesse em sua presença e o embriagou. Mas, chegando a noite, Urias não foi para casa – como no dia anterior, deitou-se com os servos de Davi.
Na manhã seguinte, Davi escreveu uma carta para Joab e mandou-a por Urias. Dizia a carta: “Põe Urias na frente, onde o combate for mais ardoroso, e desamparai-o para que ele seja ferido e morra.” Joab, que sitiava a cidade, fez o que Davi mandara. “Saíram os assediados contra Joab e tombaram alguns dos homens de Davi; morreu também Urias, o hiteu.”
Joab mandou informar Davi sobre todas as peripécias do combate, instruindo o mensageiro: “Quando tiveres contado ao rei todos os pormenores do combate, se ele se indignar e disser: ‘Por que vos aproximastes da cidade para lutar? Não sabeis que atiram projéteis do alto da muralha?... Não foi assim que morreu o filho de Abimelec? Por que vos aproximastes dos muros?’, então dirás: ‘Morreu também o teu servo Urias, o hiteu.’”
Partiu o mensageiro e fez o que lhe tinham mandado. Quando ele terminou de contar a sua história ao rei, disse Davi: “Diz a Joab que não se aflija por causa disso, pois a espada devasta ora aqui, ora ali. Mas que ele prossiga vigorosamente em sua luta contra a cidade, até destruí-la.”
Conclui a Bíblia: “Ao saber da morte de seu marido, a mulher de Urias chorou-o. Passado o luto, Davi mandou buscá-la e recolheu-a em sua casa. Ela se tornou sua mulher e lhe deu um filho. Mas o procedimento de Davi desagradara ao Senhor.”
Aparece então o profeta Natã, que entra no palácio do rei e lhe diz: “Dois homens moravam na mesma cidade, um rico e outro pobre. O rico possuía ovelhas e bois em grande quantidade; o pobre só tinha uma ovelha, que ele comprara. Ele a criava e ela crescia junto dele, com os seus filhos, comendo do seu pão, dormindo no seu seio. Ela era para ele como uma filha. Um dia, o homem rico recebeu uma visita e , não querendo tomar de suas ovelhas nem de seus bois para servir ao recém-chegado, foi e apoderou-se da ovelhinha do pobre, preparando-a para o seu hóspede.”
Davi, indignado, diz a Natã: “Pela vida de Deus! O homem que fez isso merece a morte. Ele restituirá sete vezes o valor da ovelha, por ter feito isso e não ter tido compaixão.”
Natã respondeu: “Tu és este homem. Eis o que diz o Senhor Deus de Israel: ‘Ungi-te rei de Israel, salvei-te das mãos de Saul, dei-te a casa do teu senhor e pus suas mulheres nos teus braços. Entreguei-te a casa de Israel e de Judá, e se isso ainda fosse pouco, eu teria ajuntado outros favores. Por que desprezaste o Senhor, fazendo o que é mau a seus olhos? Feriste com a espada Urias, o hiteu, para fazer de sua mulher a tua esposa, e o fizeste perecer pela espada dos amonitas. Por causa disso, jamais se afastará a espada da tua casa. ... Eis o que diz o Senhor: ‘Vou fazer que se levantem contra ti males vindos da tua própria casa. Sob os teus olhos, tomarei as tuas mulheres e as darei a um outro, que dormirá com elas à luz do sol. Porque tu agiste em segredo, mas eu o farei diante de todo o Israel.’”
Logo em seguida, adoece o menino que Davi tivera com Betsabé. O rei entra em desespero, passa dia e noite em casa, jogado por terra, vestido de um saco. “Ao sétimo dia”, diz o texto, “morreu o menino, e os servos do rei não ousavam dar-lhe a notícia.” Mas quando, finalmente Davi é informado, levanta-se, muda de roupa, põe um perfume e manda que lhe sirvam a refeição. Aos servos espantados, ele explica: “Eu jejuava e orava pelo menino, enquanto vivia, pensando: Quem sabe o Senhor terá pena de mim e me deixará o meu filho? Mas agora que morreu, para que jejuar ainda? Posso por acaso fazê-lo voltar à vida? Eu é que irei para junto dele. Ele, porém, não voltará mais a mim.”
Termina a história: “Davi consolou Betsabé, sua mulher. Foi procurá-la e dormiu com ela. Ela concebeu e deu à luz um filho, ao qual chamou Salomão. O Senhor o amou e revelou isso a Davi, por intermédio do profeta Natã.” É um lado bem pouco convencional do Senhor da Bíblia: o filho de Betsabé terá um reinado glorioso. Mas, para Davi, os problemas não tinham terminado.
Pode ter sido nessa época que ele compôs o grande salmo 50, que lhe é atribuído:
Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade.
E conforme a imensidão de vossa misericórdia,
apagai a minha iniquidade.
Lavai-me totalmente da minha falta e purificai-me de meu pecado.
Eu reconheço a minha iniquidade;
diante de mim está sempre o meu pecado.
Só contra vós pequei:
o que é mau fiz diante de vós.
Vossa sentença assim se manifesta justa,
e reto o vosso julgamento.
Eis que nasci na culpa,
minha mãe concebeu-me no pecado.
Não obstante, amais a sinceridade de coração.
Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim.
Aspergi-me com um ramo de hissope e ficarei puro.
Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.
Fazei-me ouvir um apalavra de gozo e de alegria,
para que exultem os ossos que triturastes.
Dos meus pecados desviai os olhos,
e minhas culpas todas apagai.
Luiz Paulo Horta – Escritor e jornalista. É membro da Academia Brasileira de Letras ocupando a cadeira 23. Em 1962 iniciou o curso de Direito na PUC-RJ, logo abandonado pela militância no jornalismo. Trabalhou no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil. Transferiu-se então para O Globo, onde continua a trabalhar como editorialista e crítico de música. Em 1986, fundou e dirigiu a seção de música do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 2000 e 2001, dirigiu um grupo de estudos bíblicos no Centro Loyola da PUC/RJ. Pertence à Academia Brasileira de Música e à Academia Brasileira de Arte. É membro do Conselho de Desenvolvimento da PUC-RJ e da Comissão Cultural da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em 2000 recebeu o Prêmio Padre Ávila de Ética no Jornalismo, concedido pela PUC-RJ. Em 2010 recebeu a Medalha do Inconfidente do Governo de Minas Gerais.
Publicou, entre outros, Caderno de Música, Villa-Lobos - uma introdução, Sete noites com os clássicos, A procura de um cânone e A Bíblia um diário de Leitura.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Próxima Roda:
Na última Roda deste ano, teremos um convidado brilhante: Luiz Paulo Horta. Faremos a leitura de alguns trechos do seu livro: A Biblia: um diário de leitura.
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