Poemas de
Antonio Cicero
DIAMANTE
O amor seria fogo ou ar
em movimento, chama ao vento;
e no entanto é tão duro amar
este amor que o seu elemento
deve ser terra: diamante,
já que dura e fura e tortura
e fica tanto mais brilhante
quanto mais se atrita, e fulgura,
ao que parece, para sempre:
e às vezes volta a ser carvão
a rutilar incandescente
onde é mais funda a escuridão;
e volta indecente esplendor
e loucura e tesão e dor.
As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.
Um rei assim
não ouve muito bem
e adora luz;
sem ver ninguém
prefere olhar
o horizonte, o céu:
longe daqui
é tudo seu.
Seu sangue azul
ninguém diz de onde vem
de que sertão
que mar, que além;
e para nós
ele jamais se abriu
senão uma vez
depois partiu.
Um rei assim
cultiva a solidão
sombria flor
no coração
e claro é
que o pêndulo do amor
às vezes vai
até a dor
Devo dizer
que não sofri demais.
Devo dizer
que acordei.
Mesmo sem ser
tudo que imaginei
devo dizer
que o amei.
Poemas de
Eucanaã Ferraz
NO GRANDE HOTEL DO PORTO
Gaivotas são invenções de Da Vinci, crianças
loucas, tesouras loucas, cães aéreos
de tão lépidos. Folhas em branco: a língua do vento.
Mas por que àquela hora tal agitação de asas?
Se desejavam algo, o que fosse, nada lhes poderia
dar ou emprestar, Imperador de uma tal pobreza,
a fronte cingida apenas pela febre. Era preciso
dizer àquelas aves que não havia água, que
talvez e sempre só tenha havido solidão
e mágoa em torno dele e dentro,
búzio vazio e mudo, poço exangue,
corredor sem portas, poço horizontal,
corredor para o fundo. Lembra: o médico
preceituara repouso, purgantes, filtros, infusões
e sua voz, salina, à maneira de cristais caía
dos olhos, não vinha da boca, e se acumulava
em cacos verdes na bacia redonda e grossa
dos óculos. Tudo inútil. Tudo nada.
Por que gaivotas àquela hora? Verso que se
lhes assemelhasse era um espalhamento de sílabas
atordoadas, felizes de não terem sentido, puro alarde
do ritmo, o mais alto, sobre o chão. Mas
nunca soubera o que fosse isso. E ali, a cortar o céu
noturno do Porto, a voz delas era uma foz estridente,
a mais terrível canção de exílio. Não deveria haver
jamais gaivotas sobre o teto de nenhum hotel,
proibidos tais gritos brancos de espuma, pois
a noite tem de ser a noite, sem pontes, hermética.
No entanto, lá estavam elas, violentas,
rodopiando como lâminas inglesas, azuis.
Era preciso considerar: um hotel ensina-nos mais
que todas as filosofias: não ficar, não ter, não ser.
E na massa escura de tudo, imaginou com a ironia
que lhe restava: um dia, a pompa de uma placa
(a Europa e seus ouropéis) à porta de entrada:
“Por ocasião da última visita realizada à Cidade
Invicta em dezembro de 1889, os Imperadores do Brasil
Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina estiveram
hospedados neste hotel.” Não dirão que já não eram
senão, mal e mal, um homem, uma mulher.
Calarão que a Imperatriz – que já não era – deixara,
ali, de ser hóspede de tudo. Aqui está a chave!
Sobre o telhado, a cama, a mulher morta,
a insônia, elas, as gaivotas, ensinariam
(se ensinassem algo) àquele homem,
àquele miserável, mais que toda ciência
e toda literatura: nadar, andar a vau, elevar-se
alegre, planar, fazer de tudo campo aberto
de abrir-se. A régua que carregam
nunca cega.
loucas, tesouras loucas, cães aéreos
de tão lépidos. Folhas em branco: a língua do vento.
Mas por que àquela hora tal agitação de asas?
Se desejavam algo, o que fosse, nada lhes poderia
dar ou emprestar, Imperador de uma tal pobreza,
a fronte cingida apenas pela febre. Era preciso
dizer àquelas aves que não havia água, que
talvez e sempre só tenha havido solidão
e mágoa em torno dele e dentro,
búzio vazio e mudo, poço exangue,
corredor sem portas, poço horizontal,
corredor para o fundo. Lembra: o médico
preceituara repouso, purgantes, filtros, infusões
e sua voz, salina, à maneira de cristais caía
dos olhos, não vinha da boca, e se acumulava
em cacos verdes na bacia redonda e grossa
dos óculos. Tudo inútil. Tudo nada.
Por que gaivotas àquela hora? Verso que se
lhes assemelhasse era um espalhamento de sílabas
atordoadas, felizes de não terem sentido, puro alarde
do ritmo, o mais alto, sobre o chão. Mas
nunca soubera o que fosse isso. E ali, a cortar o céu
noturno do Porto, a voz delas era uma foz estridente,
a mais terrível canção de exílio. Não deveria haver
jamais gaivotas sobre o teto de nenhum hotel,
proibidos tais gritos brancos de espuma, pois
a noite tem de ser a noite, sem pontes, hermética.
No entanto, lá estavam elas, violentas,
rodopiando como lâminas inglesas, azuis.
Era preciso considerar: um hotel ensina-nos mais
que todas as filosofias: não ficar, não ter, não ser.
E na massa escura de tudo, imaginou com a ironia
que lhe restava: um dia, a pompa de uma placa
(a Europa e seus ouropéis) à porta de entrada:
“Por ocasião da última visita realizada à Cidade
Invicta em dezembro de 1889, os Imperadores do Brasil
Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina estiveram
hospedados neste hotel.” Não dirão que já não eram
senão, mal e mal, um homem, uma mulher.
Calarão que a Imperatriz – que já não era – deixara,
ali, de ser hóspede de tudo. Aqui está a chave!
Sobre o telhado, a cama, a mulher morta,
a insônia, elas, as gaivotas, ensinariam
(se ensinassem algo) àquele homem,
àquele miserável, mais que toda ciência
e toda literatura: nadar, andar a vau, elevar-se
alegre, planar, fazer de tudo campo aberto
de abrir-se. A régua que carregam
nunca cega.
VIA
Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,
eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho, cansado engano,
sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes
do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.
Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.
Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia
nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.
E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pele. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,
eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho, cansado engano,
sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes
do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.
Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.
Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia
nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.
E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pele. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.
ANTONIO CICERO – Poeta e ensaísta. É autor, entre outras coisas, dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995) e Finalidades sem fim (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), e dos livros de poemas Guardar (Rio de Janeiro: Record, 1996), A cidade e os livros (Rio de Janeiro: Record, 2002) e, em parceria com o artista plástico Luciano Figueiredo, O livro de sombras: pintura, cinema e poesia (Rio de Janeiro, + 2 Editora, 2010). Em colaboração com o poeta Eucanaã Ferraz, editou a Nova antologia poética de Vinícius de Moraes (São Paulo: Companhia das Letras, 2003)e, em colaboração com o poeta Waly Salomão, editou o livro O relativismo enquanto visão do mundo (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994). Além de várias teses e artigos, dois livros foram escritos sobre sua obra: Do princípio às criaturas, de Noemi Jaffe (São Paulo: Capes e USP, 2008) e Antonio Cicero, de Alberto Pucheu (Rio de Janeiro: UERJ, 2010).
EUCANAÃ FERRAZ – Professor de literatura brasileira da UFRJ. Poeta, escreveu, entre outros, os livros de poemas Cinemateca (Companhia das Letras, 2008), Rua do mundo (Companhia das Letras, 2004), publicado em Portugal (Quasi, 2006), Desassombro (7 Letras, 2002, prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional), publicado em Portugal (Quasi, 2001) e Martelo (Sette Letras, 1997).
Organizou os livros Letra só, com letras de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 2003), publicado em Portugal (Quasi, 2002); Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (Nova Aguilar, 2004), a antologia Veneno antimonotonia — Os melhores poemas e canções contra o tédio (Objetiva, 2005) e O mundo não é chato, com textos em prosa de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 2005). Publicou ainda, na coleção Folha Explica, o volume Vinicius de Moraes (Publifolha, 2006).
Edita, com André Vallias, a revista on line Errática (www.erratica.com.br).
Organizou os livros Letra só, com letras de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 2003), publicado em Portugal (Quasi, 2002); Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (Nova Aguilar, 2004), a antologia Veneno antimonotonia — Os melhores poemas e canções contra o tédio (Objetiva, 2005) e O mundo não é chato, com textos em prosa de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 2005). Publicou ainda, na coleção Folha Explica, o volume Vinicius de Moraes (Publifolha, 2006).
Edita, com André Vallias, a revista on line Errática (www.erratica.com.br).
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