quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Amir Haddad: Shakespeare bem humorado: as comédias - 14 de fevereiro de 2011

Amir Haddad:

Ator, diretor e professor de teatro. Fundou o Teatro Oficina em 1958. Ganhador de dois prêmios Molière, em 1969 e 1970. Foi professor da Escola de Teatro do Pará e na Escola de Teatro da Federação das Escolas Federais Isoladas no Rio de Janeiro. Pedagogo convidado da Escola Internacional de Teatro Latino-Americano e Caribe, em Havana. A partir de 1990, Amir aprofunda suas pesquisas em teatro de rua. Seu trabalho objetiva recuperar o sentido de festa do teatro e dramaticidade das festas populares e é reconhecido nacional e internacionalmente.


Noite de Reis (fragmento)
William Shakespeare
Tradução de Bárbara Heliodora



Ato I
Cena V

Casa de Olívia
(entram Maria e o Bobo)

Maria: Não, ou me diz onde andou ou então não abro a boca o suficiente para fazer passar nem sequer um fiapo de desculpa para você. A minha ama é capaz de enforcá0lo por sua ausência.

Bobo: Pois que me enforque. Quem já está bem enforcado neste mundo não precisa ter medo de bandeira.

Maria: Explique-se.

Bobo: Ninguém tem medo do que já não vê.

Maria: Isso é resposta esfarrapada. Eu sei onde nasceu o ditado “não tenho medo de bandeira”.

Bobo: Onde, senhora Mary?

Maria: Na guerra, nisso é que você vai acabar se metendo, com todas as suas tontices.

Bobo: Bem, que Deus dê a sabedoria a quem a tem, e que os bobos saibam usar seus talentos.

Maria: Ou você acaba enforcado por ficar ausente tanto tempo, ou será posto na rua – o que não é o mesmo que enforcá-lo?

Bobo: Há muito enforcamento que impediu mau casamento; e, se for posto na rua, que o verão me proteja.

Maria: Quer dizer, então, que está inabalável?

Bobo: Eu não diria tanto, mas estou firme em dois pontos.

Maria: Para, se um arrebentar, o outro agüentar; ou, se os dois arrebentarem, suas calças caírem.

Bobo: Bom, muito bom, na verdade! Continue assim. Se Sir Toby deixasse de beber, você seria um pedaço de Eva tão espirituoso quanto qualquer outro na Ilíria.

Maria: Chega, malandro; agora basta. Aí vem minha ama. É melhor apresentar desculpas sensatas. (Sai)

(Entra Olívia com Malvólio e outros Servidores)

Bobo: Espírito, se te apraz, faz-me bom de bobices! Os espirituosos que pensam possuir-te muitas vezes são só bobos, e eu que estou certo de não te ter posso passar por sábio. Pois, como diz Quinapalus, “melhor um bobo espirituoso que um espirituoso bobo”. Que Deus a abençoe, senhora.

Olívia: Levem embora o bobo.

Bobo: Não ouviram, camaradas? Levem embora a senhora.

Olívia: Chega, você é bobo que secou: para mim, chega. E, além disso, ficou desonesto.

Bobo: Duas faltas, madona, que bebida e bons conselhos podem consertar. Dando de beber ao bobo, ele não fica mais seco. Peça ao desonesto que se emende; se se emendar, não será mais desonesto; se não puder, que o remendão o remende. Qualquer coisa emendada é remendada; a virtude que escorrega fica só com remendos de pecado, e o pecado que se emenda fica remendado de virtude. Se esse silogismo simples servir, ótimo. Se não, que se há de fazer? O único cornudo é a calamidade, logo a beleza é uma flor. A senhora pediu que levassem embora quem é bobo; portanto, eu repito, levem-na embora.

Olívia: Senhor, eu pedi-lhes que o levassem.

Bobo: Erro de apreensão do mais alto grau. Senhora, cucullus non facit monachum, o que quer dizer que não uso roupa de bobo no meu cérebro. Madona, deixe-me provar-lhe que é boba.

Olívia: E pode faze-lo?

Bobo: Com a maior facilidade, madona.

Olívia: Apresente suas provas.

Bobo: Tenho de tomar-lhe o catecismo para isso, madona. Minha boa ratinha, responda-me.

Olívia: Na falta de outra tolice qualquer, ouvirei suas provas.

Bobo: Boa madona, por quem chora?

Olívia: Bom bobo, pela morte de meu irmão.

Bobo: Creio que a alma dele está no inferno, madona.

Olívia: Eu sei que a alma dele está no céu, bobo.

Bobo: Então é boba, madona, por chorar pela alma de seu irmão, que está no céu. Levem embora a boba, cavalheiros.

Olívia: O que pensa desse bobo, Malvólio? Ele não está se emendando?

Malvólio: Está, e há de continuar até que os golpes da morte o sacudam. A senilidade, que traz a decadência ao sábio, sempre melhora o bobo.

Bobo: Que Deus lhe mande, senhor, uma rápida senilidade, para o aprimoramento de sua bobice. Sir Toby jura que eu não sou nenhuma raposa, porém nem por dois vinténs dará a sua palavra de que o senhor não é bobo.

Olívia: O que diz a isso, Malvólio?

Malvólio: Espanta-me que Vossa Senhoria se deleite com malandro tão estúpido. Eu o vi no outro dia ser derrotado por um bobo de taverna que não tinha mais miolos que uma pedra. Olhe só agora, ele já não pode defender-se. A não ser que a senhora ria e lhe dê oportunidade, fica engasgado. Eu lhe digo que, para mim, sábios que muito cacarejam com bobices decoradas não passam de palhaços dos bobos.

Olívia: Você padece de egoísmo, Malvólio, e prova tudo com apetite destemperado. Ser generoso, livre de culpa e ter boa disposição é encarar como flechas sem ponta coisas que você considera balas de canhão. Não há calúnia em bobo da casa, mesmo quando só faz deblaterar, nem ofensa em homem sabidamente sábio, mesmo quando só faz recriminar.

Bobo: Que Mercúrio a cubra de esperteza e artimanha, por falar bem dos bobos.

(Entra Maria.)

Maria: Madame, está no portão um jovem que deseja muito falar com a senhora.

Olívia: Do Conde Orsino, não é?

Maria: Não sei, madame. É um jovem bem-apessoado e traz bela criadagem.

Olívia: Quem de minha casa o detém?

Maria: Seu parente, Sir Toby, madame.

Olívia: Tire-o de lá, por favor. Fala qual um louco. É uma vergonha. (Sai Maria.) Vá lá, Malvólio. Se for súplica do conde, eu estou doente ou então saí. Faça o que quiser, mas livre-se dele. (Sai Malvólio.) Agora viu, senhor, como suas momices estão gastas e as pessoas não gostam mais delas.

Bobo: Falou por nós, madona, como se seu filho mais velho fosse bobo. Que Júpiter entupa seu crânio de cérebro, pois – lá vem ele – um de seus parentes tem massa cinzenta fraquíssima.

(Entra Sir Toby.)

Olívia: Juro que já está meio bêbado. Quem está no portão, meu primo?

Toby: Um cavalheiro.

Olívia: Cavalheiro? Que cavalheiro?

Toby: Há um cavalheiro aqui. (Arrota.) Raios partam os arenques defumados. Então, bobo, o que há?

Bobo: Meu bom Sir Toby.

Olívia: Primo, primo, como caiu tão cedo nessa lassidão?

Toby: Devassidão? Desafio a devassidão. Há alguém no portão.

Olívia: Muito bem! Quem é ele?

Toby: Seja ele o demônio ou que queira, não me importa. Desde que eu tenha fé, é o que eu digo. Bem, tudo dá na mesma. (Sai.)

Olívia: Bobo, com o que se parece um homem bêbado?

Bobo: Com um afogado, um bobo e um louco. O primeiro trago dá-lhe a febre do bobo, o segundo o enlouquece e o terceiro o afogo.

Olívia: Vá buscar o médico-legista para ver meu primo, pois já atingiu o terceiro grau de bebida. Já se afogou. Vá cuidar dele.

Bobo: Por enquanto está só louco, e o bobo cuidará do louco.
(Sai.)

Malvólio: Madame, o rapazinho jura que há de lhe falar. Disse-lhe que estava doente; ele garante entender muito do assunto e, portanto, virá falar-lhe. Disse-lhe que estava dormindo. Parece que já previa isso também e, portanto, virá falar-lhe. O que devo dizer a ele, senhora? Tem resposta para todas as recusas.

Olívia: Diga-lhe que não irá falar comigo.

Malvólio: Já disse, e ele diz que ficará à sua porta como poste de delegacia ou plantado como um banco, mas que há de lhe falar.

Olívia: Que espécie de homem é ele?

Malvólio: Ora, da espécie humana.

Olívia: Mas homem de que maneiras?

Malvólio: Péssimas maneiras. Quer falar com a senhora, quer a senhora queira, quer não.
Olívia: Que aspecto e idade tem ele?

Malvólio: Não velho o bastante para ser homem, nem moço o bastante para ser menino; é como a vagem antes de ser ervilha, como a maçã que ainda não ficou vermelha. Ele está na mudança da maré, entre menino e homem. É muito bonito e fala muito bem. Parece que mal foi desmamado.

Olívia: Deixe-o entrar. Chame a minha tia.

Malvólio: Aia, a senhora está chamando. (Sai.)

(Entra Maria.)

Olívia: Dê-me o meu véu; vamos, jogue-o sobre o meu rosto. Ouçamos novamente o embaixador de Orsino.

(Entra Viola.)

Viola: Qual é a honrada senhora da casa?

Olívia: Fale comigo; responderei por ela. O que deseja?

Viola: Mais radiosa, requintada e inigualável das belezas – por favor, digam-me se esta é a senhora da casa, pois eu jamais a vi. Não gostaria de desperdiçar meu discurso, pois não só foi excepcionalmente bem escrito como também fiz grande esforço para decorá-lo. Minhas belas, não me menosprezem. Sou muito sensível, mesmo ao menor dos maus-tratos.

Olívia: Da onde vem, senhor?

Viola: Sei dizer muito pouco além do que estudei e essa pergunta não está incluída no meu papel. Gentil e bondosa donzela, dê-me garantia razoável de que é a senhora da casa, para eu poder continuar minha fala.

Olívia: O senhor é ator?

Viola: Não, meu perspicaz coração; e, no entanto, juro pela própria peçonha da malícia, não sou o que represento. A senhora é a ama desta casa?

Olívia: A não ser que me usurpe, sim, sou eu.

Viola: Se for ela, é certo que se usurpa, pois o que é seu para conceder não é seu para reter. Mas isso fica fora de minha incumbência. Continuarei minha fala em seu louvor, para depois revelar o âmago de minha mensagem.

Olívia: Vamos ao que importa. Dispenso-lhe os louvores.

Viola: Que pena, fiz muita força para estudá-los e são muito poéticos.

Olívia: Então é ainda mais provável que sejam fingidos. Peço-lhe que os guarde. Ouvi dizer que foi muito atrevido à minha porta, e permiti que entrasse mais para observá-lo do que para ouvi-lo. Se for louco, vá-se embora; se tiver uso da razão, seja breve. Não estou de lua para ouvir conversas tolas.

Maria: Quer enfurnar as velas, senhor? O caminho é por aqui.

Viola: Não, boa lambazeira; ainda vou flutuar um pouco aqui. Acalme um pouco o seu gigante, gentil senhora!

Olívia: Diga o que tem em mente.

Viola: Sou mensageiro.

Olívia: Por certo tem algo horrível a dizer-me, já que age com tão assustadora cortesia. Diga qual a sua missão.

Viola: É só para os seus ouvidos. Não trago prenúncios de guerra, nem exigências de vassalagem. Na mão trago a oliveira; minhas palavras são tão cheias de paz quanto de significado.

Olívia: No entanto, começou a falar de forma rude. Quem é? O que deseja?

Viola: A rudeza que exibi aprendi com a recepção que tive. O que sou e o que desejo são coisas tão secretas quanto a virgindade, divinas a seus ouvidos, profanas aos dos outros.

Olívia: Deixem-nos aqui sozinhos; ouçamos a palavra divina.
(Saem Maria e Criados.) Qual o seu texto?

Viola: Doce senhora –

Olívia: Uma doutrina reconfortante; tem muito a seu favor. De onde vem seu texto?

Viola: Do seio de Orsino.

Olívia: De seu seio? Em que capítulo de seu seio?

Viola: Segundo a Teologia, no primeiro de seu coração.

Olívia: Já o li. É heresia. Não tem mais a dizer?

Viola: Boa senhora, permita-me ver seu rosto.

Olívia: Tem encargo de seu senhor para negociar com o meu rosto?  Creio que já fugiu do seu texto. Porém abriremos a cortina para mostra-lhe o quadro. (Tira o véu.) Veja, senhor, assim era eu neste momento. Não está bem-feito?

Viola: É excelente se foi Deus quem fez tudo.

Olívia: É tudo indelével, senhor; resistirá ao vento e às intempéries.

Viola: Essa é a beleza em que a natureza
            Com mão hábil ligou o branco e o rubro.
            Senhora, mais cruel que qualquer outra
            Seria, se assim fosse para a cova
            Sem legar uma cópia sua para o mundo.

Olívia: Senhor, não terei coração duro. Distribuirei várias descrições de minha beleza. Ela será inventariada em cada partícula, cada detalhe, discriminadamente, em meu testamento. Por exemplo: item um, dois lábios, de vermelho comum; item dois, olhos cinza, incluindo as pálpebras; item três, um pescoço, um queixo, etc. Foi mandado aqui para elogiar-me?

Viola: Eu já vejo o que é: muito orgulhosa.
            Porém, mesmo demônio, inda é bela.
            O meu senhor a ama. Tal amor
            Merece paga, mesmo que a senhora
            Seja a própria rainha da beleza.

Olívia: De que forma então me ama ele?

Viola: Com toda a adoração, com fértil pranto,
            Com gemidos de amor, fogo em suspiros.

Olívia: Seu amo já me ouviu. Não posso amá-lo.
            Suponho-o virtuoso, sei que é nobre,
            De grandes posses, pura juventude;
            De boa fama, livre, sábio, bravo,
            E, em toda a proporção da natureza,
            Cheio de graças. Mas não posso amá-lo.
            Há muito ele devia tê-lo aceito.

Viola: Se eu a amasse com a chama de meu amo,
            Sofrendo tanto, quase morto em vida,
            Não veria razão nessa recusa,
            Não a compreenderia.

Olívia: O que faria?

Viola: Um ninho de salgueiros à sua porta,
            Que chame a minha alma nesta casa;
            Escreva cantos de amor sem ser amado
            Para cantar na noite mais escura;
            Grite seu nome ao eco das montanhas
            E faça os ventos, tão novidadeiros,
            Gritarem: “Olívia!” E não teria paz,
            Na terra nem no ar, minha senhora,
            Enquanto eu não tivesse a sua piedade.

Olívia: Seria muito. Qual a sua origem?

Viola: Acima do meu fado. Mas ’stou bem. Eu sou fidalgo.

Olívia: Volte a senhor:
            Não posso amá-lo. Chega de mensagens,
            A não ser que só volte pra dizer
            Como ele aceitou isso. Passe bem:
            Sou grata ao seu esforço. Gaste isso.

Viola: Não sou correio pago; guarde a bolsa.
            Recompense a meu amo, não a mim.
            Seja de pedra o coração que amar;
            Seu fervor, como hoje o do meu amor,
            Seja ignorado. Adeus, bela cruel. (Sai.)

Olívia: “Qual sua origem?”
            “Acima de meu fado. Mas ‘stou bem.
            Eu sou fidalgo.” E eu juro que o és.
            Língua, rosto, membros, atos, mente.
            Te dão cinco brasões. Mas calma, espera;
            Se fosse ele o amo... Mas que é isso?
            Será tão fácil contrair a peste?
            Parece-me sentir que as perfeições
            Deste jovem, por vias invisíveis,
            Penetram-me os olhos. Pois que seja!
            Olá, Malvólio!

(Entra Malvólio.)

Cena II

Na casa de Olívia
(Entram Maria e o Bobo.)

Maria: Vem, por favor, põe esta capa e esta barba; faz com que ele acredite que é Sir Topas, o cura; vem depressa. E enquanto isso eu chamarei Sir Toby. (Sai.)

Bobo: Vou vesti-la e disfarçar-me com ela, e bem quisera que eu fosse o primeiro a usar tal traje para fingir. Não sou alto o bastante para honrar o sacerdócio, nem bastante magro para parecer um sábio; porém ser tido como honesto e bom cidadão vale tanto quanto ser chamado de prudente e estudioso. Lá vem meus comparsas.

(Entram Sir Toby e Maria.)

Toby: Que Júpiter o abençoe, mestre cura.

Bobo: Bonos dies, Sir Toby, já que, como o velho eremita de Praga, que jamais viu papel nem tinta disse, muito espirituosamente, à sobrinha do Rei Gorboduc: “O que é é”; assim, eu sendo mestre cura, sou mestre cura, pois oq eu é “o quê”? E “é”, senão é?

Toby: A ele, Sir Topas.

Bobo: Olá, olá! Paz a esta prisão!

Toby: O safado finge bem; é um safado de bem.

Malvólio (de dentro): Quem chama aí?

Bobo: Sir Topas, o cura, que vem visitar Malvólio, o louco.

Malvólio: Sir Topas, Sir Topas, bom Sir Topas, vá procurar minha senhora.

Bobo: Pra fora, demônio hiperbólico! Como entrou assim dentro desse homem? E ainda fica só falando de mulheres?

Toby: Muito bem, mestre cura.

Malvólio: Sir Topas, nunca houve homem tão injustiçado. Bom Sir Topas, não pense que estou louco. Eles me atiraram aqui, na mais tenebrosa escuridão.

Bobo: Que vergonha, seu satanás desonesto. (Só o trato assim, com tanta delicadeza, por ser daqueles tão bonzinhos que são delicados até com o próprio diabo.) Mas disse que sua cela está escura?

Malvólio: Como o inferno, Sir Topas.

Bobo: Ora, ela tem janelões transparentes como uma barricada, e clarabóias, tanto para o norte quanto para o sul, que brilham como ébano, e ainda se queixa de obstrução?

Malvólio: Eu não estou louco, Sir Topas. E digo-lhe que a cela está escura.

Bobo: Louco, está enganado. Eu digo que não há escuridão senão a ignorância, na qual o senhor está mais perdido do que os egípcios em seu nevoeiro.

Malvólio: Eu digo que esta cela está tão escura quanto a ignorância, inda que a ignorância seja escura como o inferno; e digo que jamais homem algum sofreu tais abusos. Não sou mais louco que o senhor. Pode pôr-me à prova com qualquer assunto que faça sentido.

Bobo: Qual é a opinião de Pitágoras em relação aos pássaros selvagens?

Malvólio: Que é possível que a alma de nossa avó acabe por habitar um pássaro.

Bobo: E qual sua opinião a respeito dessa opinião?

Malvólio: Tenho a mais alta opinião acerca da alma e não aprovo de modo algum a opinião dele.

Bobo: Adeus! Pode continuar na escuridão. Só quando aplaudir a opinião de Pitágoras é que eu hei de reconhecer a sua sanidade, ou quando tiver medo de matar uma galinhola, para não deixar desabrigada a alma da sua avó. Passe muito bem.

Malvólio: Sir Topas! Sir Topas!

Toby: Meu Sir Topas das maravillas!

Bobo: Ora essa; eu sou pau-para-toda-obra.

Maria: Poderias ter feito a mesma coisa sem a capa e a barba. Ele não te vê.

Toby: Vai falar-lhe com tua própria voz e vem dizer-me como ele reage. (para Maria.) Eu queria ver-me livre de toda essa encrenca. Se houver um bom modo de deixá-lo livre, é o que gostaria de fazer, pois já estou tão afundado em ofensas à minha sobrinha que não me sinto seguro para levar esta marotice até o fim. (para o Bobo.) Daqui a pouco vem até meu quarto! (Sai com Maria.)

Bobo (cantando): “Olá, Robin, alegre Robin,
                              Diz como está minha amada.”

Malvólio: Bobo!

Bobo: “Eu sei que a minha amada é cruel.”

Malvólio: Bobo!

Bobo: “Ai de mim, por que será?”

Malvólio: Bom bobo, se queres merecer a minha consideração, arranja-me uma vela, pena, tinta e papel. Por minha palavra de cavalheiro, te ficarei sempre grato.

Bobo: Mestre Malvólio?

Malvólio: Sim, bom bobo.

Bobo: Ai, ai, senhor, como conseguiu perder logo os cinco sentidos?

Malvólio: Bobo, nunca ninguém foi tão vergonhosamente abusado. Estou tão senhor de meus sentidos, bobo, quanto tu.

Bobo: Mas só tanto quanto eu? Então está mesmo louco, se não está melhor dos sentidos que um bobo.

Malvólio: Eles estão me tratando como um lixo: me prenderam no escuro, me mandaram um sacerdote asnático, e estão fazendo tudo o que podem para me fazer perder a razão.

Bobo: Cuidado com o que diz, Malvólio. O sacerdote está aqui. (Imitando Sir Topas) Malvólio, Malvólio, que os céus restaurem teus sentidos. Procura dormir e deixa de lado essas vãs baboseiras.

Malvólio: Sir Topas!

Bobo: (Imitando Sir Topas) Meu bom rapaz, não converse com ele. (como o Bobo) Quem, eu, senhor? Eu não. Deus esteja conosco, Sir Topas! (como Sir Topas) Amém, amém. (como o Bobo) Nos amaremos, senhor.

Malvólio: Bobo, bobo, escuta, bobo!

Bobo: Ai, ai, senhor, tenha paciência. O que disse, senhor? Fui repreendido por ter conversado com o senhor!

Malvólio: Bom bobo, ajuda-me com um pouco de luz e papel. Digo-te que estou tão são do espírito quanto qualquer homem na Ilíria.

Bobo: Quem dera que assim fosse, senhor.

Malvólio: Juro por esta mão que estou. Bom bobo, um pouco de tinta, papel e luz; e leva o que escreverei à minha ama. Ganharás mais com isso do que jamais ganhaste por levar qualquer outra carta.

Bobo: Vou ajudá-lo. Mas diga-me a verdade, o senhor está mesmo louco ou está só fingindo?

Malvólio: Acredite que não estou. Digo a verdade.

Bobo: Não, eu só acredito em louco depois de ver seus miolos. Vou buscar a luz, o papel e a tinta que pediu.

Malvólio: Bobo, eu te darei as mais altas recompensas. Por favor, vá logo.

Bobo (cantando):
            “Já vou senhor,
            Vou já, senhor,
            Mas logo voltarei.
            Bem sem treta,
            Qual capeta,
            A ti ajudarei.
            Aquele que no aperto,
            Sem saber que é certo,
            Gritar ‘vem cá’ pro diabo
            Ou, feito tonto,
            ‘Demo, estou pronto’
            Está bem arranjado” (sai.)

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