sábado, 10 de dezembro de 2011

Luiz Paulo Horta - 05/12/2011






Leituras de Natal - A Bíblia: um diário de leitura, com Luiz Paulo Horta - 05/12/2011


Luiz Paulo Horta
A Bíblia um Diário de Leitura (fragmento)


Capítulo 2 - Gêneros literários: o Gênesis

Poucas coisas soa tão importantes, na Bíblia, quanto a distinção entre os gêneros literários – os diferentes estilos em que os seus vários capítulos foram escritos. Nessa vasta coleção de textos, há os que pertencem ao gênero histórico – o Livro dos Reis, o Livro de Esdras, o de Neemias, o dos Macabeus; há os livros de sabedoria – Provérbios, Eclesiástico; os que são verdadeiros poemas – Jó, o Cântico dos Cânticos, a coleção de Salmos; os Livros Proféticos; os que pretendem contar histórias edificantes – Ruth, Tobias.
            E há o caso muito especial do Gênesis – logo o primeiro livro da série, atribuído a Moisés, e talvez o que maiores dificuldades coloque ao leitor moderno.
            Já houve quem perdesse a fé porque não conseguiu estabelecer a relação entre a história de Adão e Eva e as contínuas descobertas da ciência relacionadas com o homem primitivo. Nos Estados Unidos, recentemente, chegaram a ocorrer conflitos de opinião entre os defensores da tese “criacionista” – o mundo começando num momento dado, a partir do fiat   divino – e a teoria da evolução.
            É um choque que não deveria existir. A Igreja católica, por exemplo, há muito tempo deixou de discutir com a ciência sobre os primórdios do gênero humano. Você pode acreditar no fiat, ou pode achar que os primeiros homens foram surgindo aos poucos, de dentro da cadeia evolutiva – contanto que você admita que, num determinado momento dessa cadeia, a ação divina introduziu um “princípio”, um fato novo, que não pode ser explicado pelo simples encadeamento de fenômenos naturais.
            A confusão vem de se querer tomar os primeiros capítulos da Bíblia como se fossem uma reportagem sobre o começo do mundo, o que eles não são – assim como o Apocalipse não parece uma narração “realista” sobre o final dos tempos (e é significativo que, na Bíblia, tanto o começo como o fim estejam envolvidos nesse halo de mistério).
            Voltando ao Gênesis: aquelas narrativas de abertura compõem o que se pode chamar de uma história sagrada – tão ou mais verdadeira do que a “outra” história, mas narrada num tom absolutamente peculiar. Esse tom se parece com o das cosmogonias – histórias da criação – vindas de outras culturas. Estamos pisando, ao menos em parte, no território do mito.
            Essa palavra talvez sugira, para o leitor moderno, o mesmo que uma invenção, uma ficção, uma lenda. Assim ela foi encarada ao longo de todo o século XIX, quando uma escola de estudos bíblicos procurou separar, nas Escrituras, o que, ali, seria a verdade religiosa da simples imaginação de povos primitivos. Foi o que se chamou de “desmitologização” da Bíblia, e que culminou, mais recentemente, na exegese alemã de Rudolf Bultman.
            Mas, no século XX, surgiram outros caminhos, a partir do trabalho de estudiosos como Mircea Eliade, que devolveu ao mito o seu sentido original. Explica Eliade (em O sagrado e o profano): “O mito conta uma história sagrada – isto é, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo. Mas contar uma historia sagrada equivale a revelar um mistério. Narrar um mito é proclamar o que se passou ‘nas origens’. E, uma vez revelado, o mito estabelece uma verdade absoluta. ‘É assim porque foi dito que é assim’, dizem os esquimós Netsalik para defender os fundamentos da sua história sagrada e das tradições religiosas.”
            De novo Eliade: “O mito proclama a aparição de uma nova situação cósmica, ou de um acontecimento primordial. É, assim, a narrativa de uma criação: ele conta como alguma coisa começou a ser. Eis porque o mito é solidário da ontologia (a ciência do ser): ele só fala de realidades, daquilo que aconteceu realmente (mas num plano superior de realidade que acaba introduzindo um estilo diferente de narração).”
            Ainda Eliade: “O mito revela a sacralidade absoluta, porque ele descreve a atividade criadora dos deuses. Em outras palavras, o mito enumera as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo. Por essa razão, em muitos cultos primitivos os mitos não podem ser recitados em qualquer época ou em qualquer situação, mas somente nas estações ritualmente propícias ou nos intervalos de cerimônias religiosas.”
            É a irrupção do sagrado no mundo, descrita pelo mito, que funda realmente o mundo. E é por isso que o mito, descortinando esse impulso de energia criadora, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas.
            É esse mistério original que constitui a “história sagrada” e que foge aos condicionamentos do pensamento racional, ou cientifico (na verdade, ele não cabe nessas formas tradicionais de narrativa). Parece um terreno totalmente estranho à mentalidade moderna – que, de fato, fez todo o esforço para pensar “racionalmente”, “objetivamente”.
            Mas esse esforço nunca foi totalmente coroado de êxito. A modalidade do mito ficou escondida nos desvãos da nossa consciência; e não foi por acaso que Freud  (para não falar em Jung) jogou sondas nessa direção – mesmo acreditando, como homem nascido no miolo do século XIX, que estava apenas contribuindo para o avanço da ciência.
            É só recuar um pouco na nossa história pessoal: se você teve um avô, ou um tio, contador de histórias infantis, jamais as terá esquecido. E por quê? Não será porque elas falavam ao coração, à imaginação, passando por cima (ou por baixo) das barreiras da lógica? E, nessa liberdade, quanta coisa elas diziam! Talvez não precisemos chegar aos irmãos Grimm, que achavam serem os contos de fada resíduos de velhos mitos, mas o método é parecido.
            A criatura lógica que está em nós quereria mais. Mas não é esse o processo da Revelação primordial. Ela não caminha por demonstrações; mostra por partes, e às vezes mais esconde do que mostra. Por exemplo, nas velhas escrituras (e não só cristãs), a impossibilidade de olhar para o rosto de Deus. Moisés vê o Altíssimo “pelas costas”. Quem olhar de frente, morre (na Grécia antiga, esse é o padrão de várias histórias sobre Júpiter, como a lenda de Sêmele). Seria mais verdade/realidade do que o ser humano pode suportar. Pensem no Cristo, na facilidade com que ele desliza para a parabólica – a dose de verdade / realidade que uma pessoa comum pode assimilar.
            Quando você abandona os mitos “originais”, acaba desembocando nos mitos de substituição, de que a história moderna está repleta. Querendo ser a apoteose da razão, a Revolução Francesa apelou para mitos – de curtíssima duração. Mitos do século XIX foram a Ciência, o Progresso, a Evolução. Não é que não exista alguma coisa por trás dessas palavras; mas elas foram infladas na tentativa de criar uma visão de mundo que estava faltando.
            O caso mais recente, e mais impressionante, é o do marxismo: sempre afirmando estar fazendo ciência (o “socialismo científico”), Marx lançou as bases para o que seria o mais famoso “mito de substituição” dos tempos modernos. A visão Marxista postulava um agente messiânico – a classe operária; um “final dos tempos” (a sociedade sem classes) e um novo paraíso terrestre, em que desapareceriam os conflitos e até mesmo a necessidade de Estado.
            Que essa visão messiânica tenha, durante tanto tempo, fascinado amplas parcelas da mentalidade moderna é uma demonstração expressiva de que a possibilidade e a própria necessidade do mito continuam embutidas em nosso mundo interior.


Capítulo 5 - O pecado original

Deixando o território da linguagem mítica, a teologia moderna se debruça sobre o que é, ou pode ter sido, o pecado original. Uma das melhores interpretações é a do padre François Varillon, ilustre jesuíta francês falecido há duas décadas, que passo a historiar poupando o leitor de muitas aspas.
            Por que falar do pecado original? Jesus nunca disse um palavra sobre isso, e o Evangelho também não trata disso, pelo menos diretamente.
            As diferenças estão em são Paulo – por exemplo, na Epístola aos Romanos: “... por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte; e assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecamos...”
            E mais adiante: “... como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida.”
            São Paulo foi o primeiro teólogo – o maior de todos. Mas ele também pode estar recorrendo, aqui, à linguagem mítica, que parece a mais apropriada para a narrativa das origens. Com isso concorda um importante teólogo moderno, Karl Rhaner, quando diz: “A história bíblica sobre o pecado da primeira pessoa, ou das primeiras pessoas, de modo algum deve ser entendida como um relato histórico.”
            Adverte o padre Varillon: houve pensadores do século XIX que quiseram explicar o cristianismo a partir do pecado original, como se a Queda de que fala o Gênesis fosse a pedra de toque sobre a qual se ergueu o cristianismo.
            Ele comenta: então, pode-se até formar uma ideia meio caricata da estrutura do Universo. Deus, o supremo eletricista, tinha fabricado o mundo com uma fiação que funcionava perfeitamente. O ser humano tratou de embaralhar essa fiação. Daí a decisão do supremo eletricista de enviar o seu filho para consertar os erros, de modo que tudo passou a andar melhor que no plano primitivo.
            Essa é a visão com a qual o padre Varillon definitivamente não concorda. É preciso – diz ele – abandonar a ideia, ou melhor, a mitologia de um tempo em que o primeiro homem teria vivido, antes de ter pecado, num estado de beatitude e de perfeição. Não há nenhum dogma que imponha essa interpretação.
            Vale a pena lembrar que o gênero literário dos começos do Gênesis é o gênero sapiencial, em que se exprimem a reflexão e a experiência de um sábio. Em Gênesis 2/3, estamos diante não de uma narrativa histórica, como a epopeia de Davi ou de Salomão, mas de um escrito de sabedoria, cuja ponta é a resolução de um enigma, o maior enigma da condição humana.
            O que o autor desses capítulos quis nos mostrar é, antes de tudo, a situação do homem, o do século XX ou de qualquer outro tempo, em relação a Deus e em relação ao pecado. Etimologicamente, o termo hebreu “adama” significa a terra, o solo, a argila vermelha. “Adam” é o terroso, o argiloso, aquele que vem da terra.
            Prossegue Varillon:
            “Com o risco de espantar vocês, eu afirmo, não como opinião pessoal, mas em nome da Igreja: se a Igreja diz que a causa do pecado é Adão, ela nunca definiu quem é Adão. A maior parte dos teólogos contemporâneos admite que Adão é a humanidade inteira. E, em consequência, a história de Adão, que nos foi contada, é também a nossa história: o pecado de Adão é o nosso pecado.”
            “É verdade”, ele prossegue, “que essa história nos diz que Adão foi criado num estado de santidade e de justiça. Seria preciso, a partir daí, concebê-lo como um homem de uma inteligência e de uma liberdade perfeitas, uma espécie de super-homem em relação aos homens que nós conhecemos? Isso não corresponde à descrição que a ciência nos dá dos primeiros homens emergindo lentamente da animalidade.”
            O que a Bíblia nos apresenta é o fim para o qual Deus encaminhou o homem: a sua divinização. A perfeição do primeiro homem está em que ele não é como os outros seres da natureza, animais ou vegetais, mas é chamado por Deus, desde o inicio, a uma finalidade propriamente divina: um apelo para entrar no amor de Deus, para partilhar eternamente a própria vida de Deus.
            Dito de outra maneira: a perfeição do homem é a perfeição de uma vocação e não de uma situação. É o que a Bíblia nos ensina quando diz que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.
            “Deus não fabricou uma liberdade, pois cabe ao homem, criado com a possibilidade da liberdade, tornar-se livre ele mesmo. Deus cria o homem como alguém que é capaz de criar a si mesmo. É por isso que eu [Varillon] não gosto da expressão ‘Deus criou o homem livre’. Pois isso implica dois erros: colocar a criação no passado e estimular o sentimento de que a liberdade é um presente, uma coisa pronta, quando a verdade é que a liberdade é o contrário de uma coisa pronta. Ela só é liberdade quando nós mesmos a tornamos real.
            “Isso é o que Deus quer: ele cria o homem como um ser divinizável. Essa é a definição mais profunda que se possa dar do ser humano, para além de tudo o que nos dizem as ciências humanas. Mas o homem não pode divinizar-se sozinho: é preciso que ele acolha o dom de Deus, pois é Deus quem diviniza. Não é o homem, por si mesmo, que vai suplantar o abismo infinito que existe entre ele e Deus, porque sua origem é terrestre.
            “Essa origem terrestre é, para o homem, uma fonte de dessemelhança em relação a Deus. Pois a voz da natureza faz ressoar constantemente no homem um apelo para viver não para Deus, ou para os outros homens, mas para si mesmo, egoisticamente, como os outros seres da natureza que vivem segundo o seu instinto. Eis o que é pecado original: não se trata de uma origem cronológica, mas da origem da natureza humana, da própria raiz da existência.”
            Enfatiza o padre Varillon.
            “Fazemos começar a nossa história antes do pecado e temos a impressão de que o estado de Adão, antes do pecado, não tinha nada de comum com o estado que os seres humanos conheceram depois. E nos pomos a perguntar, um pouco ingenuamente: se Adão não tivesse feito essa besteira, se ele fosse um pouco mais razoável, um pouco mais firme com sua mulher, muitas catástrofes teriam sido evitadas, teríamos ficado na felicidade perfeita, firmemente estabelecidos na virtude. Francamente, o que é que nós sabemos disso? Isso é pura imaginação, terreno fértil para o infantilismo.
            “Supondo que o primeiro homem não tivesse pecado, o que é que nos garante que o segundo não o faria?  Por que não o terceiro, ou o quarto? E depois, eis o essencial: assim se chegaria à ideia de uma humanidade que teria atingido a glória perfeita da sua divinização dispensando totalmente o Cristo. Chega-se a imaginar que, se Adão não tivesse pecado, ele teria tido o poder de conduzir sozinho toda a sua descendência humana para a divinização. Infelizmente, ele fez uma besteira, e foi preciso que Jesus Cristo viesse consertar essa falta...
            “Pensando melhor”, conclui Varillon, “basta ler o Novo Testamento para descobrir que há uma única fonte de divinização, que é o Cristo. Desde o inicio, Cristo foi querido por Deus, e, como diz são Paulo, nós fomos criados nele. A nossa humanidade, desde as origens, está destinada a entrar na filiação divina através do cristo.
            “Mas eu peço encarecidamente aos cristão que não sejam triunfalistas, que não se apresentem diante dos incrédulos como alguém que pode fornecer uma explicação. Por que é que o homem é pecador? Não existe resposta. O pecado está na origem da nossa existência, e nós estamos, desde a origem, nos braços de Deus como nos braços de um pai que perdoa. Esse é o significado, mas não é uma explicação. A resposta de Deus não é uma resposta teórica: Ele entra no mundo do pecado e ali encontra a morte. Esta é a Sua humanidade.”


Capítulo 8 - Jacó, o esperto

De Isaac, filho de Abraão, a Bíblia não fala muito. Um espírito maldoso diria que, depois do susto que ele levou, faltou-lhe ânimo para correr novos riscos. (Mas Jesus e os profetas se referiam ao “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”.) Seu filho Jacó, ao contrário, é das figuras mais pitorescas da Bíblia – o pai dos doze filhos que formarão as doze tribos de Israel. Ele aparece numa daquelas equações de irmãos com que a Bíblia às vezes trabalha – Esaú e Jacó, Caim e Abel, Moisés e Aarão.
            Esaú é o primogênito, tem todas as regalias, mas é um estouvado. Jacó, símbolo da esperteza (como Ulisses, na velha Grécia), aproveita-se disso para roubar-lhe a primogenitura.
            Primeiro, na famosa cena do prato de lentilhas: Esaú chega esfomeado do campo. Jacó preparara lentilhas suculentas. “Dá-me essas lentilhas”, diz Esaú. E o outro: “Vende-me primeiro o teu direito à primogenitura.” Esaú jurou e vendeu. Talvez achasse que, mais adiante, poderia voltar atrás.
            O segundo episódio é mais sério. Isaac está velho, quase cego, vai morrer. É a hora de dar a bênção final, definitiva, que consagra o primogênito – como um rei que escolhe o seu sucessor. Rebeca, mulher de Isaac, ajuda Jacó a enganar o pai. Jacó veste-se com uma roupa peluda (porque Esaú era cabeludo) e vem para receber a bênção. Quando Esaú chega do campo, está feito. A bênção é irrevogável.
            Mas o que é isso?, dirá o leitor de hoje. Que moral é essa? O filho engana o pai, ajudado pela mãe? É a moral – digamos, os costumes – de um período que a Bíblia descreve, infinitamente remoto. A Revelação não atropela as épocas, nem os costumes. Procede por etapas. Foi o que já vimos na história de Abraão e Sara. Mas Rebeca enganando o marido! Diz uma senhora muito sábia, minha conhecida: “Ela sabia que Esaú era estouvado, que a liderança tinha de passar por Jacó.” Pragmatismo feminino.
O fato é que, depois disso, Jacó ainda dá muitas outras provas de esperteza (e , por sua vez, é enganado por Labão, na história maravilhosa do seu namoro com Raquel – “Sete anos de pastor serviu Jacó a Labão, pai de Raquel, serrana bela...”).
            Mas, um dia, ele se transforma. Depois de um período de exílio (quando teve de fugir da cólera de Esaú), ele está de volta, com sua mulher, seus filhos, seus rebanhos. O momento é grave, prenhe de ameaças, porque ele vai reencontrar Esaú.
            “Naquela noite, ele se levantou com suas duas mulheres, suas duas servas e seus onze filhos e passou o vau do Jaboc. Tomou-os, e os fez passar a torrente com tudo o que lhe pertencia.
            “Jacó ficou só; e alguém lutava com ele até o romper da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, tocou-lhe aquele homem na articulação da coxa e esta deslocou-se, enquanto Jacó lutava com ele. E disse-lhe: ‘Deixa-me ´partir, porque a aurora se levanta.’ ‘Não te deixarei partir’, respondeu Jacó, ‘antes que me tenhas abençoado.’Ele perguntou-lhe: ‘Qual é o teu nome?’ ‘Jacó.’ ‘Teu nome não será mais Jacó’, tornou ele, ‘mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e venceste.’ Jacó perguntou-lhe: ‘Peço-te que me digas qual é o teu nome.’‘ Por que me perguntas o meu nome?’, respondeu ele. E abençoou-o no mesmo lugar. Jacó chamou àquele lugar Fanuel, ‘porque’, disse ele, ‘ eu vi a Deus face a face, e conservei a vida.’”
            Misterioso trecho, que desde então passou a ser imagem, o símbolo do combate espiritual. Jacó sai vencedor, mas ferido na perna; pagou um preço pela vitória.
            É o combate que espera todos os que, neste mundo, querem avançar nos caminhos do espírito – o caminho da vida.
            Podia ser mais fácil, dirá você; mas é assim, e não só na nossa tradição. Diz um mestre hindu: “Estreito como o fio da navalha é o caminho da salvação.” O Buda teve de renunciar ao seu reino e a todos os seus para ir em busca da sabedoria.
             A tradição cristã fala disso em tons igualmente vigorosos – como são Pedro na sua primeira Carta: “É isto o que constitui a vossa alegria, apesar das aflições passageiras a vos serem causadas ainda por diversas provações, para que a prova a que é submetida a vossa fé (mais preciosa que o ouro perecível, o qual, no entretanto, não deixamos de provar ao fogo) redunde para vosso louvor, para vossa honra e para vossa glória, quando Jesus Cristo se manifestar.”
            É a ideia da prova – da dificuldade que purifica o espírito, obrigando-o a algumas definições vitais.
            Jacó passou pela difícil prova. Encontra o irmão que teria todos os motivos para desejar a sua perda. Mas os dois chegam a um acordo precário. Naquele tempo, de costumes nômades, sempre era possível uma redistribuição de terras.
             E o Senhor apareceu de novo a Jacó. “Teu nome, disse-lhe, é Jacó. Tu não te chamarás mais assim, mas Israel.” E continuou: “Sê fecundo e multiplica-te. De ti nascerá um povo e uma assembleia de povos; e de teus rins sairão reis.”
            No mesmo lugar onde Deus lhe falou, Jacó erigiu um altar sobre o qual fez uma oferenda. E deu o nome de Betel ao lugar onde Deus lhe tinha falado. Assim começava a história de Israel.


Capitulo 19 - A queda

Poucas histórias são tão concisas e eficazes, na Bíblia, como a que descreve o pecado de Davi. “ Na época em que os reis saem para a guerra”, diz o Livro de Samuel, “Davi enviou Joab com os seus suboficiais e todo o Israel, que devastaram a terra dos amonitas e sitiaram Raba.” Curioso texto, retratando uma época em que a guerra era tão comum que tinha até estação propícia.
            Davi ficara em Jerusalém. Uma tarde, passeando pelo terraço de seu palácio, avistou lá embaixo uma mulher que se banhava e que era muito formosa. Informando-se a respeito dela, disseram-lhe: “É Betsabé, filha de Elião, mulher de Urias, o hiteu.”
            Davi manda mensageiros trazerem a mulher. “Ela veio, e Davi dormiu com ela.” Em pouquíssimo tempo, Betsabé descobre que está grávida e manda a informação ao rei. Davi, então, envia uma mensagem ao seu general, Joab: “Manda-me Urias, o hiteu.”
            Chega Urias, que estava em campanha, e Davi lhe pede notícias de Joab, do exército e da guerra. Terminada a entrevista, ele diz ao guerreiro: “Desce à tua casa e lava os teus pés.” Urias saiu do palácio do rei, e este mandou que o seguissem. A implicação era óbvia: o “descanso do guerreiro” criaria o álibi para a gravidez de Betsabé. “Mas Urias não desceu à sua casa: dormiu à porta do palácio, com os demais servos de seu amo.”
            Informado disso, o rei chama novamente o guerreiro: “Não voltaste porventura de uma viagem? Por que não vai à tua casa?” Resposta de Urias: “A Arca se aloja debaixo de uma tenda, assim como Israel e Judá. Joab, meu chefe, e seus suboficiais acampam ao relento, e teria eu ainda a coragem de entrar em minha casa para comer, beber e dormir com minha mulher? Pela tua vida, não farei tal coisa.”
            Davi lhe diz: “Fica ainda hoje aqui; amanhã te despedirei.” Urias ficou. No dia seguinte, Davi o convidou, fez com que ele comesse e bebesse em sua presença e o embriagou. Mas, chegando a noite, Urias não foi para casa – como no dia anterior, deitou-se com os servos de Davi.
            Na manhã seguinte, Davi escreveu uma carta para Joab e mandou-a por Urias. Dizia a carta: “Põe Urias na frente, onde o combate for mais ardoroso, e desamparai-o para que ele seja ferido e morra.” Joab, que sitiava a cidade, fez o que Davi mandara. “Saíram os assediados contra Joab e tombaram alguns dos homens de Davi; morreu também Urias, o hiteu.”
            Joab mandou informar Davi sobre todas as peripécias do combate, instruindo o mensageiro: “Quando tiveres contado ao rei todos os pormenores do combate, se ele se indignar e disser: ‘Por que vos aproximastes da cidade para lutar? Não sabeis que atiram projéteis do alto da muralha?... Não foi assim que morreu o filho de Abimelec? Por que vos aproximastes dos muros?’, então dirás: ‘Morreu também o teu servo Urias, o hiteu.’”
            Partiu o mensageiro e fez o que lhe tinham mandado. Quando ele terminou de contar a sua história ao rei, disse Davi: “Diz a Joab que não se aflija por causa disso, pois a espada devasta ora aqui, ora ali. Mas que ele prossiga vigorosamente em sua luta contra a cidade, até destruí-la.”
            Conclui a Bíblia: “Ao saber da morte de seu marido, a mulher de Urias chorou-o. Passado o luto, Davi mandou buscá-la e recolheu-a em sua casa. Ela se tornou sua mulher e lhe deu um filho. Mas o procedimento de Davi desagradara ao Senhor.”
            Aparece então o profeta Natã, que entra no palácio do rei e lhe diz: “Dois homens moravam na mesma cidade, um rico e outro pobre. O rico possuía ovelhas e bois em grande quantidade; o pobre só tinha uma ovelha, que ele comprara. Ele a criava e ela crescia junto dele, com os seus filhos, comendo do seu pão, dormindo no seu seio. Ela era para ele como uma filha. Um dia, o homem rico recebeu uma visita e , não querendo tomar de suas ovelhas nem de seus bois para servir ao recém-chegado, foi e apoderou-se da ovelhinha do pobre, preparando-a para o seu hóspede.”
            Davi, indignado, diz a Natã: “Pela vida de Deus! O homem que fez isso merece a morte. Ele restituirá sete vezes o valor da ovelha, por ter feito isso e não ter tido compaixão.”
            Natã respondeu: “Tu és este homem. Eis o que diz o Senhor Deus de Israel: ‘Ungi-te rei de Israel, salvei-te das mãos de Saul, dei-te a casa do teu senhor e pus suas mulheres nos teus braços. Entreguei-te a casa de Israel e de Judá, e se isso ainda fosse pouco, eu teria ajuntado outros favores. Por que desprezaste o Senhor, fazendo o que é mau a seus olhos? Feriste com a espada Urias, o hiteu, para fazer de sua mulher a tua esposa, e o fizeste perecer pela espada dos amonitas. Por causa disso, jamais se afastará a espada da tua casa. ... Eis o que diz o Senhor: ‘Vou fazer que se levantem contra ti males vindos da tua própria casa. Sob os teus olhos, tomarei as tuas mulheres e as darei a um outro, que dormirá com elas à luz do sol. Porque tu agiste em segredo, mas eu o farei diante de todo o Israel.’”
            Logo em seguida, adoece o menino que Davi tivera com Betsabé. O rei entra em desespero, passa dia e noite em casa, jogado por terra, vestido de um saco. “Ao sétimo dia”, diz o texto, “morreu o menino, e os servos do rei não ousavam dar-lhe a notícia.” Mas quando, finalmente Davi é informado, levanta-se, muda de roupa, põe um perfume e manda que lhe sirvam a refeição. Aos servos espantados, ele explica: “Eu jejuava e orava pelo menino, enquanto vivia, pensando: Quem sabe o Senhor terá pena de mim e me deixará o meu filho? Mas agora que morreu, para que jejuar ainda? Posso por acaso fazê-lo voltar à vida? Eu é que irei para junto dele. Ele, porém, não voltará mais a mim.”
            Termina a história: “Davi consolou Betsabé, sua mulher. Foi procurá-la e dormiu com ela. Ela concebeu e deu à luz um filho, ao qual chamou Salomão. O Senhor o amou e revelou isso a Davi, por intermédio do profeta Natã.” É um lado bem pouco convencional do Senhor da Bíblia: o filho de Betsabé terá um reinado glorioso. Mas, para Davi, os problemas não tinham terminado.
            Pode ter sido nessa época que ele compôs o grande salmo 50, que lhe é atribuído:

            Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade.
E conforme a imensidão de vossa misericórdia,
apagai a minha iniquidade.
Lavai-me totalmente da minha falta e purificai-me de meu pecado.

Eu reconheço a minha iniquidade;
diante de mim está sempre o meu pecado.
Só contra vós pequei:
o que é mau fiz diante de vós.
Vossa sentença assim se manifesta justa,
e reto o vosso julgamento.
Eis que nasci na culpa,
minha mãe concebeu-me no pecado.
Não obstante, amais a sinceridade de coração.
Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim.
Aspergi-me com um ramo de hissope e ficarei puro.
Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.
Fazei-me ouvir um apalavra de gozo e de alegria,
para que exultem os ossos que triturastes.
Dos meus pecados desviai os olhos,
            e minhas culpas todas apagai.


Luiz Paulo Horta – Escritor e jornalista. É membro da Academia Brasileira de Letras ocupando a cadeira 23. Em 1962 iniciou o curso de Direito na PUC-RJ, logo abandonado pela militância no jornalismo. Trabalhou no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil. Transferiu-se então para O Globo, onde continua a trabalhar como editorialista e crítico de música. Em 1986, fundou e dirigiu a seção de música do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 2000 e 2001, dirigiu um grupo de estudos bíblicos no Centro Loyola da PUC/RJ. Pertence à  Academia Brasileira de Música e à Academia Brasileira de Arte. É membro do Conselho de Desenvolvimento da PUC-RJ e da Comissão Cultural da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em 2000 recebeu o Prêmio Padre Ávila de Ética no Jornalismo, concedido pela PUC-RJ. Em 2010 recebeu a Medalha do Inconfidente do Governo de Minas Gerais.
Publicou, entre outros, Caderno de Música, Villa-Lobos - uma introdução, Sete noites com os clássicos, A procura de um cânone e A Bíblia um diário de Leitura.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Próxima Roda:

Na última Roda deste ano, teremos um convidado brilhante: Luiz Paulo Horta. Faremos a leitura de alguns trechos do seu livro: A Biblia: um diário de leitura.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Cláudio Willer - 21 de novembro de 2011






Rimbaud por Claudio Willer - Surrealismo e Poesia no Barco Bêbado de Rimbaud - 21 de novembro de 2011


Arthur Rimbaud
Correspondências (fragmento)

Tradução de Ivo Barroso


Carta a Paul Demeny

Charleville, 15 de maio de 1871.

Resolvi proporcionar-lhe uma hora de literatura nova. Começo logo com um salmo de atualidade:

CANTO DE GUERRA PAISIENSE


– Eis um pouco de prosa sobre o futuro da poesia –
Toda a poesia antiga vai dar na poesia grega, Vida harmoniosa. – Da Grécia ao movimento romântico – Idade Média – só temos literatos, versificadores. De Ênio a Teroldo, de Teroldo  a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, aviltamento e glória de inúmeras gerações idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. Se tivessem apagado suas rimas, embaralhado seus hemistíquios, o Divino Tolo seria hoje tão ignorado quanto o último entre os autores de Origens. Depois de Racine, o jogo cria mofo. Havia durado dois mil anos.
Nem pilhéria, nem paradoxo. A razão me inspira mais certezas sobre o assunto do que jamais poderia ter de cóleras um Jeune-France. Quanto ao mais, liberdade aos novos! de execrar os ancestrais: estamos em casa e temos tempo.
O romantismo nunca foi bem julgado. Quem o julgaria? Os críticos!! Os românticos, que provam muito bem como a canção é raramente obra, ou seja, o pensamento cantado e compreendido do cantor?
Porque Eu é um outro. Se o cobre acorda clarim, nenhuma culpa lhe cabe. Para mim é evidente: assisto à eclosão de meu pensamento: eu a contemplo, eu a escuto. Tiro uma nota ao violino: a sinfonia agita-se nas profundezas, ou ganha de um salto a cena.
Se os velhos imbecis tivessem descoberto algo mais que a falsa significação do Eu, não teríamos de varrer esses milhões de esqueletos que, desde um tempo infinito, vêm acumulando os produtos de sua inteligência caolha, arvorados em autores!
Na Grécia, já disse, versos e liras dão ritmo à Ação. Depois disso, música e rimas se tornaram jogos, divertimentos. O estudo desse passado encanta os curiosos; vários se distraem em renovar tais antiguidades: é coisa para eles. A inteligência universal sempre rejeitou essas ideias, é claro; os homens recolheram uma parte desses frutos do cérebro; agiam segundo eles, escreviam livros com eles; assim andaram as coisas, o homem não se aperfeiçoando, não estando ainda desperto, ou ainda não na plenitude do grande sonho. Funcionários, escritores: autor, criador, poeta, tal homem jamais existiu!
O primeiro estudo de quem aspira a ser poeta é o conhecimento total de si mesmo; buscar sua alma, inspecioná-la, experimentá-la, conhecê-la. Assim que a sabe, deve cultivá-la; isso parece simples: em todo cérebro realiza-se um desenvolvimento natural; quantos egoístas se proclamam autores; há muitos outros que se atribuem seu progresso intelectual! – Mas trata-se de tornar a alma monstruosa: à maneira dos comprachicos, em suma! Imagine um homem que plante e cultive verrugas em seu rosto.
Afirmo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente.
O Poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar-se a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência. Inefável tortura para a qual se necessita toda a fé, toda a força sobre-humana, e pela qual o poeta se torna o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, – e o Sabedor supremo! – pois alcança o insabido. Por ter, como ninguém, cultivado sua alma, que já era rica, ele alcança o desconhecido, e quando, assombrado, terminar por perder a consciência de suas visões, ele as terá visto! Que se arrebente no salto rumo às coisas inauditas e inomináveis: outros trabalhadores horríveis virão; e começarão pelos horizontes onde o outro sucumbiu!

– Continuação em seis minutos – 

Intercalo aqui um outro salmo fora do texto: conceda-lhe uma atenção complacente, – e todo mundo ficará encantado. – Tenho o arco em mão, começo:


MINHAS POBRES NAMORADAS


Eis aí. E veja bem que, se não receasse fazê-lo desembolsar mais de 60 cent. De porte, – eu pobre coitado que, em sete meses, não vi sequer uma moeda de bronze! – mandar-lhe-ia ainda meus “Amantes de Paris”, cem hexâmetros, sim senhor, e minha “Morte de Paris”, duzentos hexâmetros! –
Recomeço:
Logo, o poeta é um verdadeiro roubador do fogo.
Responde pela humanidade e até pelos animais; deverá fazer com que suas invenções sejam cheiradas, ouvidas, palpadas; se o que transmite do fundo possui forma, dá-lhe forma; se é informe, deixa-o informe. Encontrar uma língua;
– Afinal, como toda palavra é ideia, a linguagem universal há de chegar um dia. É preciso ser acadêmico – mais morto que um fóssil – para elaborar um dicionário, em que língua seja. Os fracos que se pusessem a pensar sobre a primeira letra do alfabeto poderiam rapidamente mergulhar na loucura! –
Essa língua será da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, seres, sons: pensamento que se engancha a um pensamento e o puxa para fora. O poeta seria o indicador da qualidade de desconhecido despertada em seu tempo na alma universal; daria mais: a fórmula de seu pensamento, a notação de seu avanço no Progresso! Enormidade se fazendo norma, absorvida por todos, ele seria verdadeiramente um multiplicador de progresso!
Esse futuro será materialista, como vê; – Sempre repleta, de Número e de Harmonia, essa poesia será feita para ficar. – No fundo, seria ainda um pouco a Poesia grega.
A arte eterna terá suas funções, já que os poetas serão cidadãos. A Poesia não marcará mais o ritmo da ação; ela estará na frente.
Esses poetas virão! Quando for quebrada a servidão infinita da mulher, quando ela viver para si e por si mesma, quando o homem – até então abominável – lhe tiver dado sua alforria, também ela será poeta! A mulher encontrará o ignoto! Seu mundo de ideias diferirá do nosso? – Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, repelentes, deliciosas; nós as tomaremos, as compreenderemos.
À espera disso, insistamos com os poetas pelo novo – ideias e formas. Todos os hábeis estariam convictos de haver satisfeito a essa demanda. – Mas não é isto!
Os primeiros românticos foram videntes sem se darem muita conta disto: o cultivo de suas almas começou por acidente: locomotivas abandonadas, mas resfolegantes, que às vezes  entram nos trilhos. – Lamartine mostra-se às vezes vidente, mas estrangulado pela forma envelhecida. – Hugo, cabeçudo demais, tem muito de VISTO em seus últimos volumes: Os Miseráveis são um verdadeiro poema. Tenho Les Châtiments [Os Castigos] à mão; Stella dá-nos mais ou menos a medida da visão de Hugo. Demasiado de Belmontet e de Lamennais, de Jeovás e de colunas, velhas enormidades cediças.
Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações sofredoras e obcecadas pelas visões, – insultadas por sua angelical preguiça! Ó! Os contos e os provérbios insípidos! ó as noites! ó Rolla, ó Namouna, ó a Taça! Tudo é francês, ou seja, odiento ao grau supremo; francês, não parisiense! Mais uma obra desse gênio odioso que inspirou Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentado pelo Sr. Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Fascinante, o seu amor! Eis aí a pintura a esmalte, da poesia sólida! Por muito tempo a poesia francesa será saboreada, mas na França. Qualquer jovem empregado de mercearia é capaz de desembuchar um apóstrofe à la Rolla; todo seminarista traz suas quinhentas rimas no segredo de um caderno. Aos quinze anos, esses arroubos de paixão põem os jovens no cio; aos dezesseis, já se contentam em recitá-los com sentimento; aos dezoito, ou mesmo aos dezessete, todo colegial que tem a possibilidade faz seu Rolla, escreve um Rolla! Alguns talvez ainda morram por isso. Musset não soube fazer nada: havia visões por trás da gaze das cortinas: ele fechou os olhos. Francês, molenga, arrastado do boteco para a cátedra colegial, o belo morto está morto, e, agora, não nos demos sequer ao trabalho de despertá-lo com as nossas abominações!
Os segundos românticos são muito videntes: Th[éophile] Gautier, Lec[onte] de Lisle, Th[éodore] de Banville. Mas como inspecionar o invisível e escutar o inaudito era algo diferente de retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Contudo, viveu num meio por demais artístico; e sua forma, tão elogiada, é de fato mesquinha: as invenções do ignoto requerem formas novas.
Afeita às velhas formas, entre os inocentes, A. Renaud, – fez seu Rolla; L. Grandet, – fez seu Rolla; os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, Cl. Popelin, Soulary, L. Salles; os discípulos, Marc Aicard, Theuriet; os mortos e os ibecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamps, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boêmios; as mulheres; os talentos, Leon Dierx e Sully-Prudhomme, Coppée, – a escola nova, dita parnasiana, tem dois videntes, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. – É tudo. Por isso trabalho para me tornar vidente. – E terminemos com um canto piedoso.


AGACHAMENTOS


Seria execrável de sua parte se não me respondesse: logo, porque daqui a oito dias estarei em Paris, talvez.
Até a vista,

A. Rimbaud.

Senhor Paul Demeny,
Douai.






Arthur Rimbaud
Prosa poética (fragmento)

Tradução de Ivo Barroso



A MANHÃ

            Já não foi uma vez adorável, heróica, fabulosa a minha mocidade, dessas de se inscrever em páginas de ouro,  promissora demais! Qual o crime, que erro, me fez merecer a miséria de agora? Vós que admitis possam as bestas soluçar de dor, os doentes se desesperarem, terem os mortos sonhos maus, tentai descrever minha queda e meu sono. Eu por mim, já não me explico melhor do que um mendigo com seus constantes padre-nossos e ave-marias. Não sei mais falar!
            Hoje creio haver, no entanto, terminado a relação de meu inferno. E era bem o inferno; o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.
            Neste mesmo deserto, nesta mesma noite, meus olhos cansados despertam sempre à luz da estrela cor de prata, sempre, sem que se comovam os reis da vida, os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos afinal, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da nova sabedoria, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, para adorar   os primeiros! o Natal na terra!
            O cântico dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida.


MANHÃ DE EMBRIAGUEZ

            Oh meu Bem, oh meu Belo! Fanfarra atroz em que não mais tropeço! cavalete feérico! Hurra pela a obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Tudo começou com risos de crianças, com eles vai terminar. Este veneno permanecerá em nossas veias mesmo quando acabar a fanfarra e voltarmos a nossa antiga inarmonia. Ó, agora que somos tão dignos dessas torturas! recolhamos fervorosamente esta promessa sobreumana feita ao nosso corpo e à nossa alma criados: esta promessa, esta demência! A aparência, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, desterrar as honestidades tirânicas, para que pudéssemos realizar o nosso amor mais puro. Começou com certas repugnâncias e terminou, ­— não nos sendo possível apreender de imediato essa eternidade, — terminou com uma debandada de perfumes.
            Risos de crianças, discrição dos escravos, austeridade das virgens, horror das faces e objetos daqui, sagrado sede vós pela lembrança desta vigília. O que havia começado com toda a grosseria, eis que vai acabar em anjos de chama e gelo.
            Curta vigília de embriaguez, sagrada! ainda que não seja pela máscara com que nos gratificaste. Nós te confirmamos, método! Não nos esquecemos que ontem glorificaste cada uma de nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar nossa vida inteira todos os dias.
            Eis o tempo dos Assassinos.



ARTHUR RIMBAUD – (1854-1891). Poeta francês. Considerado pós-romântico e precursor do surrealismo, é uma das maiores influências da poesia moderna. Jean Nicolas Arthur Rimbaud nasce em Charleville e revela vocação para os versos ainda no colégio. Foge de casa diversas vezes durante a adolescência.
Muda-se para Paris aos 17 anos, financiado pelo poeta Paul Verlaine, a quem enviara seu Soneto das Vogais (1871). Um ano depois Verlaine deixa a família para viver com Rimbaud em Londres. A tempestuosa relação amorosa entre os dois termina quando Rimbaud é ferido por Verlaine com um tiro no pulso.
Uma Estação no Inferno (1873) e Iluminações (1886) revelam uma consciência estética nova, uma linguagem libertária, a idéia de que a poesia nasce de uma alquimia do verbo e dos sentidos. Quando termina Iluminações, aos 20 anos, desiste da literatura e retoma a vida errante que o caracterizara na adolescência.
Comercializa peles e café na Etiópia, alista-se no Exército colonial holandês, para desertar logo depois, trafica armas em Ogaden, vai para o Chipre e para Alexandria. Em 1891 tem a perna amputada, em decorrência de um câncer no joelho. Morre em Marselha, depois de demorada agonia.

CLAUDIO WILLER – Doutor em Letras na USP.. Poeta, ensaísta e tradutor; publicou livros como Geração Beat (L&PM Pocket, 2009), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna (Civilização Brasileira, 2010) e vários ensaios na coletânea O Surrealismo (Perspectiva, 2008).

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz - 10 de outubro de 2011







Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz - A poesia brasileira contemporânea para além do verso - 10 de outubro de 2011

Poemas de

 Antonio Cicero


DIAMANTE

O amor seria fogo ou ar
em movimento, chama ao vento;
e no entanto é tão duro amar
este amor que o seu elemento
deve ser terra: diamante,
já que dura e fura e tortura
e fica tanto mais brilhante
quanto mais se atrita, e fulgura,
ao que parece, para sempre:
e às vezes volta a ser carvão
a rutilar incandescente
onde é mais funda a escuridão;
e volta indecente esplendor
e loucura e tesão e dor.

ALGUNS VERSOS

As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.


EU VI O REI PASSAR

Um rei assim
não ouve muito bem
e adora luz;
sem ver ninguém
prefere olhar
o horizonte, o céu:
longe daqui
é tudo seu.

Seu sangue azul
ninguém diz de onde vem
de que sertão
que mar, que além;
e para nós
ele jamais se abriu
senão uma vez
depois partiu.
Um rei assim
cultiva a solidão
sombria flor
no coração
e claro é
que o pêndulo do amor
às vezes vai
até a dor

Devo dizer
que não sofri demais.
Devo dizer
que acordei.
Mesmo sem ser
tudo que imaginei
devo dizer
que o amei.


Poemas de

Eucanaã Ferraz


NO GRANDE HOTEL DO PORTO

Gaivotas são invenções de Da Vinci, crianças
loucas, tesouras loucas, cães aéreos

de tão lépidos. Folhas em branco: a língua do vento.
Mas por que àquela hora tal agitação de asas?

Se desejavam algo, o que fosse, nada lhes poderia
dar ou emprestar, Imperador de uma tal pobreza,

a fronte cingida apenas pela febre. Era preciso
dizer àquelas aves que não havia água, que

talvez e sempre só tenha havido solidão
e mágoa em torno dele e dentro,

búzio vazio e mudo, poço exangue,
corredor sem portas, poço horizontal,

corredor para o fundo. Lembra: o médico
preceituara repouso, purgantes, filtros, infusões

e sua voz, salina, à maneira de cristais caía
dos olhos, não vinha da boca, e se acumulava

em cacos verdes na bacia redonda e grossa
dos óculos. Tudo inútil. Tudo nada.

Por que gaivotas àquela hora? Verso que se
lhes assemelhasse era um espalhamento de sílabas

atordoadas, felizes de não terem sentido, puro alarde
do ritmo, o mais alto, sobre o chão. Mas

nunca soubera o que fosse isso. E ali, a cortar o céu
noturno do Porto, a voz delas era uma foz estridente,

a mais terrível canção de exílio. Não deveria haver
jamais gaivotas sobre o teto de nenhum hotel,

proibidos tais gritos brancos de espuma, pois
a noite tem de ser a noite, sem pontes, hermética.

No entanto, lá estavam elas, violentas,
rodopiando como lâminas inglesas, azuis.
Era preciso considerar: um hotel ensina-nos mais
que todas as filosofias: não ficar, não ter, não ser.

E na massa escura de tudo, imaginou com a ironia
que lhe restava: um dia, a pompa de uma placa

(a Europa e seus ouropéis) à porta de entrada:
“Por ocasião da última visita realizada à Cidade

Invicta em dezembro de 1889, os Imperadores do Brasil
Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina estiveram

hospedados neste hotel.” Não dirão que já não eram
senão, mal e mal, um homem, uma mulher.

Calarão que a Imperatriz – que já não era – deixara,
ali, de ser hóspede de tudo. Aqui está a chave!

Sobre o telhado, a cama, a mulher morta,
a insônia, elas, as gaivotas, ensinariam

(se ensinassem algo) àquele homem,
àquele miserável, mais que toda ciência

e toda literatura: nadar, andar a vau, elevar-se
alegre, planar, fazer de tudo campo aberto

de abrir-se. A régua que carregam
nunca cega.


VIA

Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,

eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho, cansado engano,

sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes
do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.

Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.

Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.

E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pele. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.


ANTONIO CICERO – Poeta e ensaísta. É autor, entre outras coisas, dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995) e Finalidades sem fim (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), e dos livros de poemas Guardar (Rio de Janeiro: Record, 1996), A cidade e os livros (Rio de Janeiro: Record, 2002) e, em parceria com o artista plástico Luciano Figueiredo, O livro de sombras: pintura, cinema e poesia (Rio de Janeiro, + 2 Editora, 2010). Em colaboração com o poeta Eucanaã Ferraz, editou a Nova antologia poética de Vinícius de Moraes (São Paulo: Companhia das Letras, 2003)e, em colaboração com o poeta Waly Salomão, editou o livro O relativismo enquanto visão do mundo (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994). Além de várias teses e artigos, dois livros foram escritos sobre sua obra: Do princípio às criaturas, de Noemi Jaffe (São Paulo: Capes e USP, 2008) e Antonio Cicero, de Alberto Pucheu (Rio de Janeiro: UERJ, 2010).

EUCANAÃ FERRAZ – Professor de literatura brasileira da UFRJ. Poeta, escreveu, entre outros, os livros de poemas Cinemateca (Companhia das Letras, 2008), Rua do mundo (Companhia das Letras, 2004), publicado em Portugal (Quasi, 2006), Desassombro (7 Letras, 2002, prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional), publicado em Portugal (Quasi, 2001) e Martelo (Sette Letras, 1997).
Organizou os livros Letra só, com letras de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 2003), publicado em Portugal (Quasi, 2002); Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (Nova Aguilar, 2004), a antologia Veneno antimonotoniaOs melhores poemas e canções contra o tédio (Objetiva, 2005) e O mundo não é chato, com textos em prosa de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 2005). Publicou ainda, na coleção Folha Explica, o volume Vinicius de Moraes (Publifolha, 2006).
Edita, com André Vallias, a revista on line Errática (www.erratica.com.br).